domingo, 2 de outubro de 2022

2 de outubro de 2022

Há dias em que não me orgulho da mãe que sou. Este poderia ser o título deste texto - ou o resumo do fim de semana.

Há dias, vários, em que não me orgulho da mãe que sou. Dias, vários, em que sinto que não sirvo para esta função, para este papel. Há dias, ainda que poucos, ainda que não vários, em que me questiono silenciosamente se não terei ido contra o que me estava destinado, se não terei sido mais obstinada, se não terei querido em demasia algo para o qual não fui feita. 

E se "dias não são dias", dias há em que me dói. Dói-me o cansaço acumulado, o tom de voz que não me sai como eu desejaria que me saísse. Dói-me que não me oiça. Dói-me a pressa constante em que andamos, em que o faço andar. Dói-me que passe a vida a dizer-lhe "não gosto de esperar" mas seja a primeira a deixá-lo à espera.

Há dias, muitos, em que sinto que não lhe chego. Não chego para lhe amparar as quedas e para o preparar o suficiente. 
Há dias em que não as antevejo, em que não preparo o terreno porque vou, eu própria, às cegas. E nesses dias dói-me muito. Dói-me vê-lo a sentir-se incapaz, a sentir-se frustrado.
Como ontem, quando fomos a uma festa de uma amiga da escola em que os pais não iriam entrar - e eu não percebi. Ele ficou ali, colado a mim, muitas vezes a chorar de frustração por não conseguir entrar, por não conseguir dar o passo que todos os outros deram. E eu fiquei ali, sem dar o passo para tentar um "jeitinho" que me permitisse ajudá-lo a ambientar-se, sem dar o passo de pegar nele e nos virmos embora sem que se sentisse cada vez mais incapaz.
Como ontem, quando a minha frustração também foi crescendo e a dada altura já devia soar a zanga. Como ontem, quando o levei a comer um gelado para que sentisse que eu não estava zangada.

Há dias, muitos, em que me sinto tão cansada que só queria desligá-lo da ficha por mais uma hora ou ligá-lo numa tomada um bocadinho mais distante. 
Como hoje, em que acordou às 6h05 para choramingar ou miar, sem dizer o porquê, e o meu cansaço, a minha frustração, a minha impaciência me crescem na voz. Dias em que ele chora sem que eu perceba o porquê e eu só não choro por vergonha ou por uma necessidade - incoerente - de me mostrar forte. Dias em que a minha voz se eleva e o levanto do chão com algo mais (com algo menos) do que carinho.

Há dias, muitos, em que me recrimino por não ser sempre a mãe que quero ser. Dias, muitos, em que transporto nos ombros o peso dos dias.

Todos os dias o deito e todos os dias lhe digo "És o amor da minha vida. Para sempre". 
Que todos os dias em que consigo ser a mãe que quero ser, que todos os dias em que não lhe falho, o possam ajudar a sentir.


domingo, 4 de setembro de 2022

3 de setembro de 2022

Sentados no quarto do F, fazíamos uma qualquer brincadeira. Ouvimos o barulho, curto, de algo a arrastar, seguido do estrondo de algo a cair no chão. Lembro-me de pensar “a vizinha de cima deixou cair qualquer coisa” e de ter continuado a brincadeira por mais um ou dois minutos - ou terá sido menos? - até que umas batidas fortes na porta, acompanhadas de um pedido de ajuda, me fizeram levantar de um salto.
Fiz o curtíssimo caminho até à porta convencida de que tinha acontecido algo à vizinha do lado, já bem velhota, e que a filha estaria a pedir-nos ajuda. Quando abri a porta e vi a do vizinho da frente aberta, não estranhei, pensei que também fosse ajudar a socorrer a vizinha. 
O choque começou quando ouvi a voz que nos pedira ajuda a dizer, desse mesmo apartamento em frente ao nosso
- É o C., o C. caiu no chão. 
Entrámos pelo apartamento adentro e ele ali estava, caído no chão da cozinha, inconsciente e a sangrar.
O Luís ficou, eu voltei a sair. Voltei a casa, peguei no telemóvel e liguei para o 112. Enquanto falava com a senhora do CODU sentava o F. na cama do Alf, que fica mesmo perto da porta, e punha-lhe o iPad nas mãos para ver a Patrulha Pata.
- Não saias daqui, estou na casa do Sr. C. Se precisares de alguma coisa chama a mãe.
Certificámo-nos de que não saía da posição lateral de segurança enquanto chamávamos por ele.
- Sr. C, está a ouvir-nos? Sr. C respire. Estamos aqui consigo. Sr. C, está a ouvir-nos? Vá lá, Sr. C., fique connosco.
Enquanto repetíamos isto uma e outra vez, voltava a casa para ver do F., íamos à janela para ver da ambulância, abraçávamos a amiga que por sorte estava de visita ao Sr. C. e assim o pôde socorrer.
- Ele é o meu único amigo, ajudem-me pf. 
Não podíamos quebrar. Continuámos a falar com ele, para ele. Continuámos a falar com ela. Demos nome a uma cara e presença que fomos vendo uma e outra vez.
Nos vinte minutos que a ambulância demorou a chegar, o Sr. C. foi passando por diferentes níveis de consciência. Lembro-me de olhar para a sua mão, fechada com força, e de pensar que não o traríamos de volta. Depois começou a mexer-se, desconfortável. Pedimos-lhe para se deixar estar, pedimos que não se virasse. Conseguiu erguer-se nos cotovelos para se virar para o lado oposto. Mexeu na cabeça e soltou um ou outro queixume - não palavras, sons apenas.
- Sr. C., está a ouvir-nos?
- Hum.
- A ajuda já deve estar a chegar.
- Hum.
A ambulância chegou. Três bombeiros, um deles estagiário. Não percebi muito da avaliação que fizeram, só achei tudo extremamente lento e descontraído. Colocaram-lhe uma máscara ainda antes de o imobilizarem.
- É mesmo preciso isso?
- Depois já não conseguimos.
“E isso seria um problema para quem?” - pensámos todos.
Precisavam do cartão do cidadão do senhor. Olhámos em volta, percorremos todas as superfícies sem sinal da carteira. Avançámos para as gavetas - um exemplo de organização - e da carteira nem sinal. A dada altura olhei para ele e pensei que a teria no bolso. Era afinal um osso, dos muitos que tem salientes pelos tantos quilómetros de corrida semanais. Os meus olhos encontraram por fim a mochila preta com que já o vira antes, poisada na cama do quarto desocupado.
Lembrei-me de que devíamos contactar o filho mas nem o seu nome sabia. A amiga, felizmente, soube logo dizê-lo. Peguei no telemóvel dele a medo, pensando como conseguiria desbloqueá-lo. Não tinha código. Procurei nas últimas chamadas e liguei. Expliquei tudo com uma calma que não sentia.
Colocaram-no na ambulância trinta ou quarenta minutos depois de chegarem. Só queríamos empurrá-los até lá para que tudo fosse mais rápido. Demoraram mais dez minutos, aqui parados, até que soubessem para que o hospital o deveriam levar - o GO está a 10 minutos de nossa casa.
Quando a ambulância chegou, o filho já lá estava. Nunca houve informações médicas para além de “já fez uma TAC, aguarda consulta em neurocirurgia” ou, no dia seguinte “vai ter de repetir a TAC”. 
Foi preciso pedir ajuda a contactos de contactos no GO para se conseguir saber o seu estado clínico. Foi preciso fazê-lo até para se saber que teria tido alta - mesmo sem o filho saber. Depois de horas a tentar ligar para o GO, foi buscá-lo. Veio para casa. No dia seguinte seguiu para um hospital privado em que repetiu todos os exames. Espera-se recuperação total em 3 semanas.
Fomos visitá-lo há uns dois dias. O atleta que todos os dias corria vários quilómetros, apesar dos 65 anos de idade, estava muito parado no sofá. Do sucedido, nada recorda mas mandou um beijinho para o F. Sentado quase no escuro, vi-lhe o rosto negro. O Alf também foi cumprimentá-lo e deixou-se ficar sentado aos seus pés.
Esta noite, a primeira que passou sozinho após o acidente, ficámos com as chaves de casa como SOS. Por volta das 3h, 4h da manhã acordei com o estrondo de algo a cair. Disse “caiu” e saí da cama que nem uma flecha. No hall, enquanto decidíamos o que fazer, o Luís disse 
- Vai lá à varanda e vê se não foram as cadeiras.
Tinham sido. O Sr. C. estava em segurança.
Há perguntas que não deixam de ecoar cá dentro. E se estivesse sozinho? Se a amiga não estivesse com ele, teríamos ouvido a queda sem saber e continuado o nosso dia com toda a normalidade? Ficava ali a morrer no chão da cozinha? E se ele voltar a cair e nós não ouvirmos?