quarta-feira, 24 de abril de 2013

24 de abril de 2013

Se há uns meses te dissessem tu não acreditarias - não assim, não aqui, não agora. E, no entanto, trocam-se as voltas, trocam-se os percursos, e aqui estás tu outra vez.
Há um sol diferente e o que trazes em ti não é igual também. A postura, a forma como respiras enquanto esperas, não é a mesma. Há uma calma maior, uma tranquilidade acrescida que te vem de para onde vais. Talvez preferisses a ansiedade a remexer-te as entranhas e a bater-te mais forte no peito - mas bem, diferente não é mau: ainda há um coração a bombear-te o sangue pelas veias e a fazer-te querer mais do que o que tens.

domingo, 21 de abril de 2013

21 de abril de 2013

Para e escuta. Escuta que ela hoje tem muito para te dizer. 
Aqui, onde se une ao rio aos teus pés, onde o som te embala, para e escuta este som que vai e que vem, para te dizer que tudo é assim: tudo vai, tudo vem, tudo volta a ir. Às vezes é preciso parar para ver, para observar com atenção esse movimento incessante.
E o que vês só pode ser visto à sua luz. Esta luz que é dela e que não há igual em parte alguma. Esta é a luz que te dá, que partilha contigo sem contrapartidas. A luz que reflete na pedra do chão e que de novo vem até ti. A luz que recebes em duplicado. Recebe-a bem, guarda-a bem, conserva-a em ti. Mais logo, quando descer sobre a água lá mais ao fundo, quando a luz se for aqui, terás sempre mais em ti - um brilho quente a aquecer-te, a iluminar-te até que amanhã a luz se voltará a erguer, a brilhar aqui, a refletir aqui, a incidir duplamente em ti. Esta luz que te chega pelo olhar, que te aquece a pele, que te ilumina por dentro para te dizer que tudo é assim: a luz vem, a luz vai, a luz volta.
Que lições te dá pelos sentidos, que lições te traz quando tu queres ver, quando queres ouvir, quando deixas que chegue até ti.
E lá em baixo, lá mais abaixo, o rio continua a tocar-lhe devagarinho, embalando-a e embalando-te suavemente, cheio de um carinho que parece não ter fim.

terça-feira, 16 de abril de 2013

16 de abril de 2013

Sabe-te a pouco e o que te dão não chega para que te baste.
Dás. Dás muito. Dás mais um bocadinho. Dás sem fim. Mas aí dentro, aí num cantinho recondido, talvez dês para que deem, talvez dês para receberes - um bocadinho, só um bocadinho, que um bocadinho basta.
Mas o que te dão não chega para te aliviar o peso que trazes em ti. O que te dão não aconchega, não cria um encosto confortável em que apeteça ficar. 
Aperta-se o nó. O nó que te estanca as entranhas, que te estanca o sangue no interior. Aperta-se em vez de se aliviar um pouco. Adensa-se pela tensão do interior. Mas às vezes, em momentos mais frios do dia, a tensão é tão grande que o nó, as pontas do nó, se mexem ligeiramente, ameaçando soltar-se, cedendo à pressão. E, nesses momentos, há pequenas gotas que se soltam. Uma atrás da outra - assim, devagarinho. Inspiras e expiras com vontade. Inspiras e expiras com vontade - e talvez com a esperança de que ao encheres-te de ar aumentes a pressão e o nó não aguente. Talvez precises que se solte, que se desfaça. Talvez assim se alivie o peso que trazes em ti. Já que o que te dão não chega para que te baste.

terça-feira, 9 de abril de 2013

9 de abril de 2013



(banda sonora para a leitura)

Sentada de pernas esticadas sobre a mesa, as costas encostadas à almofada, uma madeixa de cabelo a ser enrolada na ponta do dedo indicador, entre esse e o polegar. Inspiras e, ao expirares, abres o livro que tens pousado sobre as pernas. 
Lês palavra atrás de palavra, linha atrás de linha, com as páginas a passarem depressa. Focas as letras, num esforço consciente para que o teu olhar não se levante, para que os teus olhos não foquem a gaveta aberta que te ocupa parte do campo visual. Voltas atrás repetidas vezes, com a atenção dispersa entre o livro pousado nas tuas pernas e a gaveta aberta que consegues ver através do canto do teu olho esquerdo.
Abres mais os olhos para de seguida os semicerrares, procurando focar mais as letras, diminuir o campo de visão. Mantens-te assim por minutos que parecem demorar horas, com a pele enrugada à volta dos olhos e a expressão alterada pelo esforço.
A gaveta aberta que consegues ver pelo canto do olho cria-te um formigueiro nas pernas e nos braços - e um maior aí dentro, a correr-te pelas veias. Procuras ignorá-la. Procuras empurrá-la para longe - como se os teus olhos tivessem braços e esses fossem fortes o suficiente para empurrar para longe uma gaveta como aquela. Pestanejas com força, pestanejas para humedecer a vista e para clarear a visão. Dobras as pernas e abraças os joelhos e os teus olhos continuam pousados no livro, a cara virada para baixo - num esforço tão consciente que quase sentes duas mãos a amparar-te a cabeça para que se mantenha imóvel.
Inspiras e expiras. Atiras o livro para o lado e puxas de um cigarro. Sentada à chinês, com o corpo a balançar ligeiramente para a frente e para trás, observas de frente a gaveta aberta. 
Já a tentaste fechar antes. Usaste toda a tua força para a empurrares para dentro, para a colocares no seu devido lugar.  Inclinaste o tronco, com os braços esticados à frente do peito e as tuas pernas esticadas lá mais atrás, alongando-se numa diagonal forte. Cerraste os maxilares e empurraste com toda a tua força mas a gaveta, de tão cheia, quase não saiu do mesmo lugar. Tentaste e voltaste a tentar e paraste apenas quando, de tanto tentar, o sangue te correu mais depressa nas veias e te gerou um formigueiro difícil de conter. Fingiste não a ver. Leste mais umas páginas, fumaste mais uns cigarros, mas a visão da gaveta aberta não deixou que o teu olhar focasse as letras e o teu cérebro acompanhasse as ideias. 
Deixas-te ficar aí sentada a inalar e a exalar o fumo de mais um cigarro, olhando a gaveta aberta e procurando definir uma estratégia para a colocares no sítio. Levantas-te, mãos na cintura, pernas abertas à largura da bacia. Inclinas ligeiramente a cabeça enquanto observas o conteúdo da gaveta. É o caos que contém que não te permite colocá-la no sítio. Quando todas as partes encaixarem uma nas outras conseguirás empurrá-la, apenas com um dedo, para o seu lugar. E por isso puxas a gaveta, suportas o seu peso até ao chão e despejas todo o seu conteúdo. Remexes. Pegas em cada uma das partes e depositas toda a tua atenção, arrancando sorrisos e outras coisas aí de dentro com cada uma. Colocas dentro da gaveta elemento atrás de elemento, procurando acomodá-los a todos. Abanas a cabeça e despeja-los novamente. Recomeças. Remexes uma e outra vez e sentes o formigueiro a apoderar-se mais de ti de cada vez que tens de recomeçar. Sacodes os braços no ar, procurando atirá-lo para longe. Prossegues. Sabes que poderás ter de o fazer uma e outra vez mas que, quando todos os elementos encaixarem uns nos outros, poderás finalmente fechar a gaveta. Talvez a possas fechar para sempre ou talvez, ao mexeres numa das partes, lances novamente o caos e tenhas de recomeçar, remexendo cada uma das partes como se da primeira vez se tratasse, para que tudo encaixe no devido lugar. E depois, quando a gaveta estiver realmente fechada, podes voltar a sentar-te aí, com as pernas esticadas sobre a mesa, as costas confortavelmente encostadas às almofadas e o cabelo a ser enrolado à volta do indicador, ao mesmo tempo que os teus olhos, focados nas palavras, devoram uma atrás de outra nas páginas que não param de passar.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

3 de abril de 2013



(banda sonora para a leitura)

Cada um acredita no que quer. Essa é uma forma de proteção. Ou de ilusão.
Em cada um dos dias, em cada um dos momentos do dia, de acordo com o que trazemos em nós, cada um acredita no que quer.
Reformula as verdades com que contacta - até com as que lhe caem em cima - e acredita apenas no que quer. Acreditar no que se quer pode ser ver mais. Acreditar no que se quer pode ser ver menos. Ou pode simplesmente ser não se querer acreditar. Ponto final.
Avança-se. Um dia. Dois dias. Acredita-se noutra coisa qualquer. Cria-se uma verdade diferente em que acreditar com todas as forças - para ver de mais, para ver de menos. Pensa-se que se partilha a verdade - mas se cada um traz em si uma verdade diferente em que acreditar, como se pode partilhar de uma só verdade?
Constrói-se sobre a verdade. Constrói-se e descontrói-se uma e outra vez. Hoje assim, amanhã assado. Constrói- se com o que nos dão, descontrói-se quando nos tiram. Só a verdade, a que trazemos em nós, não muda. Podemos querer vê-la. Podemos não a querer mais. Mas, a que trazemos em nós, permanece (quase) intacta. Para ilusão ou para proteção, cada um acredita no que quer.