terça-feira, 31 de dezembro de 2013

- 2013 -

Alguns números em jeito de resumo das Palavras Soltas de 2013:

Em 2012 publiquei 18 textos no meu blog. Em 2013 publiquei 79.

Em 2013 escrevi pela primeira vez para o P3, 4 crónicas. Fica a nota, com um sorriso, de que foi mais difícil encontrar uma fotografia publicável do que ver a primeira crónica aprovada - e a fotografia é ainda assim muito má.
Em 2013 as minhas palavras atravessaram o oceano até ao Brasil, numa colaboração semanal com o blog A Vida em Posts

A 29 de março de 2013 o meu blog atingiu as 2000 visitas. Hoje, 9 meses depois, tem mais de 6000, de vários países onde nunca coloquei os pés.


Em 2013 as Palavras Soltas continuaram a completar-me. A vossa presença também. 

Em 2014 façam mais barulho por aqui, deixem mais palavras vossas, destaquem frases ou excertos dos textos. Façam-se ouvir.

Obrigada por todas as leituras atentas.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

29 de dezembro de 2013

Palavras.*
Às vezes acho que um dia terei de escolher. Escolher entre a vida e isto. Entre a vida e as palavras a caírem depressa das minhas pontas dos dedos.
Habituei-me a esconder-me aqui. A esconder-me ou a criar aqui a vida que queria ter. Habituei-me a viver amores em palavras, a vivenciar situações escritas. Habituei-me até a escrever palavras molhadas – de um molhado com sabor a sal. Por anos e anos, as palavras foram o que de melhor tive. Quando me fugiram fiquei sozinha a viver o dia a dia.
Quando eu precisei elas voltaram. Não quando precisei, um pouco mais tarde. Mas vieram, não me falharam. Alimentadas por palavras alheias que devorava em vários livros, elas foram-se formando novamente em mim. Palavra após palavra. Com elas construí mais – mais à frente, em maior quantidade, com maior intensidade. Construí e desconstruí mundos. Vivi paixões que de uma outra forma teriam passado. Mastiguei palavras de situações vividas, dando-lhes um novo ar, um novo fôlego. E a pairar sobre mim sempre o medo – o medo de que se fossem outra vez, que se fossem para sempre.
Quando a vida se endireita, quando entra em rotina, elas sempre me fogem. Sinto-as constrangidas pela realidade, por quem as rodeia. Sinto-as a encolherem-se no tempo que escasseia, a partilharem (de forma mal distribuída) a atenção. Não são elas, sou eu. Sinto-me a encolher sem elas. Porque percebo, hoje, que sem elas sou igual a todos os outros. Quebra-se-me a sensibilidade, o olhar atento. Quebra-se-me a disponibilidade para lhes dar tempo, para as sentir, para as deixar escorregar-me pelos dedos – que o processo antes automático agora precisa de tempo para ocorrer. Quebram-se-me as palavras a meio do caminho porque não as agarro logo – e elas agora são frágeis para se segurarem sozinhas.
Às vezes acho que um dia terei de escolher. Escolher entre a vida feliz e as palavras a escorregarem-me com facilidade das pontas dos dedos. Escolher entre a vida e as palavras – sabendo que sem elas me sinto sempre um pouco sozinha. Porque sem elas eu não sou mais a mesma – e gostava mais da outra que as tinha.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 30 de dezembro de 2013

sábado, 28 de dezembro de 2013

28 de dezembro de 2013

Não imaginava que o ano acabaria assim. Quando o iniciei não fazia ideia.
Entrei apaixonada. Apaixonada e a escrever muito. Apaixonada pela vida, pelo trabalho, pela família, pelos amigos. Por ele. E pelas palavras, mais do que nunca.
Entrei com vontade de fazer diferente: ter menos medos - ou os mesmos mas pouco lhes ligar - mais coragem, mais ação. Mais palavras. Entrei com tudo - e não imaginava que o ano acabaria assim.
Levantei voo três vezes - literalmente falando, que de outra forma seriam muitas mais. Levantei voo e pousei com o coração a sair-me pela boca. Acreditei que alguns voos me mudariam a vida, me mudariam as relações e as crenças. Por alguns dos destinos quis efetivamente mudar a vida - arriscar tudo, mudar-me com tudo, deitar tudo a perder. Precisava de um empurrão que não veio. Depois quis mudar-me sozinha. Mudar-me com tudo e sem pedidos alheios. Quis fugir-me. Não fui. Nos dias menos bons talvez queira ir ainda, com uma mala muito grande em que me possa enfiar.
Continuei a vê-los crescer e a ajudá-los a fazê-lo. Continuei a zangar-me muito e a derreter-me um pouco mais. E continuei - continuo - a questionar por que o faço, até quando o farei - e o que virá depois.
No ano em que mais escrevi, atravessei o oceano com palavras, publiquei mais do que em qualquer outro ano e temi (temo) como nunca deixar de o conseguir fazer. Fi-lo sempre por entre incertezas, medos, deceções, ânsias - e receio que as palavras não encontrem um outro caminho. 
Percebo hoje que alguns processos nunca terão fim. Mas aprendi a proteger-me mais, a dar um bocadinho menos. Aprendi a proteger-me de mim - e às vezes é mesmo preciso fazê-lo. Aprendi a olhar menos para trás, a não mexer em gavetas antigas.
Rodeei-me mais dos meus - dos de sempre. Este foi o ano em que quase fui testemunha. Este foi o ano em que nasceram mais bebés. Este foi o ano em que mais pessoas deixaram o país. Este foi o ano em que todos continuámos a crescer - em número, em tamanho, em opções. Este foi o ano em que continuei a ter orgulho nos meus - um orgulho agora maior.
Tem piada. Saio quase como entrei. Depois de tantas voltas, saio quase como entrei. Foi por isso que me apaixonei por ti - por todas as surpresas em que me fazes tropeçar. 
E eu não imaginava que o ano acabaria assim. Quando o iniciei não fazia ideia.

23 de dezembro de 2013

Logo sei quem vem*
Há dias em que me sento no passeio, e me deixo ficar a observar-te de longe. E tu apareces sempre, um bocadinho mais tarde ou mais cedo, mas nunca falhas. Mãos nos bolsos. Olhar meio perdido. Um ar alheado que me faz encontrar-te no meio da multidão. Encostas-te ao muro e espreitas lá para baixo. E logo sei quem vem. O teu sorriso que se estampa no rosto mal ela sai das escadas, com o olhar poisado no chão, não deixa grande margem para dúvidas. E eu levanto um pouco o jornal, tentando não chamar as atenções. Cumprimentam-se com dois beijos bem repenicados (quase que os consigo ouvir daqui) e depois ficam parados. Mas tu moves-te, consigo ver-te a mexeres-te freneticamente. E ficam parados, a olhar para cima e para baixo. Depois sobem, ou descem. Mas a tua expressão é sempre a mesma. Sempre o mesmo sorriso que tens para ela, especificamente. Estás parado ao lado dela. Mas consigo ver-te a descolares-te de ti próprio, a roçares os lábios no pescoço dela, a cheirá-la, a apoderares-te rapidamente, suavemente. Mas estás parado, a olhar para ela, com um brilhozinho nos olhos.
Nos outros dias apareces calmo, como quem nada espera. Encostas-te de costas para o muro, e deixas que ela – a outra – suba as escadas, de olhar radiante. E depois o que acontece é mais ou menos o mesmo. Só não a queres devorar. Não todos os dias. Não sempre. Mas há dias. Há dias, e apenas alguns, em que queres senti-la, queres saber que ela é tua como sempre foi, queres cheirá-la, e beijá-la. Mas só de vez em quando. Só nos dias em que sentes que é disso que precisas. Só nos dias em que sentes que ela te pode dar tudo o que queres, sem nada pedires.
E depois espanto-me com a minha capacidade de análise. É tão fácil ver que andas confuso. Tão, mas tão, fácil. E há dias em que me olhas e aí eu não hesito: levanto os olhos para te olhar directamente, usando o mais frio dos meus olhares.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 23 de dezembro de 2013

16 de dezembro de 2013

Porquê(s)*
E, de repente, faz-se luz. Faz-se luz aí dentro quando menos esperas.
É aquela vontade súbita que vai crescendo, a vontade súbita de um cigarro, de inspirar com força o seu fumo.
Tens passado dias, meses até, a tentar juntar as peças do puzzle. Colocas aqui, retiras dali, olhas de perto e mais ao longe, mas as linhas, as cores de diferenças ténues, parecem esbater-se mais com o tempo e então as peças, que colocas aqui e retiras dali, continuam a passar-te pelas mãos num ciclo sem fim. Mas, de repente, fez-se luz.
E enquanto, com as mãos trémulas, procuras agarrar o isqueiro, com a respiração prestes a fugir ao teu controlo, há um
Porque não eu?
a explodir-te no peito, a sair-te pela boca, a elevar-se no ar. Deixaste-o sair sem querer. Permitiste-te senti-lo com vergonha quando tudo o que querias era partilhar a felicidade alheia. Mas o
Porque não eu?
que deixaste escapar foi sentido. Sentido agora e sentido antes. Sentido antes e agora retomado. Perguntas-te
- Porque não eu?
 e perguntas também
- Porque não comigo?
e depois, invariavelmente, deixas que o teu corpo escorregue em direção ao chão, com as costas a arrastarem-se pela parede e um braço a abraçar os joelhos já lá em baixo, enquanto que o outro, segurando o cigarro, procura segurar também as lágrimas antes que estas te molhem o rosto.
- Porque não comigo?
E zangas-te. Zangas-te a sério. Zangas-te com os outros mas zangas-te especialmente contigo. Tu que quiseste mudar a vida. Tu que, cheia de medo, colocaste (quase) tudo no prego.
E queres gritar-lhe. Queres gritar-lhe bem para que te oiça – assim, com os ouvidos e com todos os outros sentidos. Queres que perceba pela tua linguagem corporal, queres que lhe doa no peito o que antes – e agora – tanto te doeu a ti. De repente, isso é tudo o que queres. Magoá-lo um bocadinho, magoá-lo muito. Torcer-lhe o coração no peito ao ponto de quase o arrancares – como se assim o arrancasses da vida que agora tem e de que não fazes parte. Queres gritar-lhe:
Porque não comigo?
Mas tudo o que consegues dizer, ainda que baixinho, é que foi por ti. Foi por ti que não. Foi o teu medo e as constantes questões que gerou e que lhe colocaste – uma após a outra. Foi pela tua ansiedade. Foi pelo teu amor. Foi por todo o teu amor que ele não te amou. Tu, que deste tudo – e mais um bocadinho (grande). Foi por ti que ele não te pôde amar por inteiro.
E assim te cresce mais a dor no peito. E a vontade que antes tinhas não existe mais. Agora queres endireitar o coração no peito com cuidado, compondo-o e colocando-lhe até um lacinho. Queres dar festinhas ao coração alheio. Queres cuidá-lo tanto – mais uma vez. E assim o teu se torce mais um bocadinho sob o peso de mais uma falha que sempre entendes como tua. Quando a única questão que deverias colocar seria:
- Porquê tu?
ou
- Porquê contigo?
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 16 de dezembro de 2013

9 de dezembro de 2013

Zanga de menina*
O trabalho por fazer pesa-te nos ombros. Não o fazes mas também não o esqueces. Não o esqueces quando ao sábado de manhã te deixas ficar afundada em lençóis, com os teus pés a passearem-se devagarinho pelos pés alheios, ou quando trocas palavras com um brilhante sol de inverno a brilhar sobre o mar à tua frente ou ainda quando te vês rodeada pela família (ou amigos). Não o esqueces mas também não o fazes.
Por vezes sentas-te à secretária. Sentas-te mesmo com o objetivo de despachar trabalho. É desta, desta faço tudo. Mas o teu cérebro parece não querer colaborar e tu não o queres forçar. E então divagas. Procuras manter-te atualizada socialmente, vendo atualizações de estado, vendo rostos que há muito não vês de perto. Por vezes visitas álbuns inteiros, de foto em foto. E é aí que a nostalgia quase sempre te apanha.
É a nostalgia do que foi. A nostalgia do que continua a existir para além de ti. As amizades que o tempo, a vida, os acontecimentos – tudo junto ou nada disto, tu não sabes ainda dizer – te levou. E sentes uma angustia a crescer-te no peito.
Zangas-te por não teres antecipado perdas, por não teres tido precaução em situações que tu previas que te fossem estragar relações, afastando-te de pessoas que sempre estiveram perto. Zangas-te com o trabalho – todo o trabalho – que te afasta do que é importante, com todas as vezes em que disseste
- Não posso, tenho de trabalhar
mesmo sabendo que depois darias por ti a nada fazer, a procrastinar no sofá, na cama, no computador – em todo o lado – para não teres de o fazer.
Zangas-te por teres crescido, por estares a crescer, por seres responsável – e por teres, indubitavelmente, de o ser. Zangas-te com a vida de pessoa crescida que te roubou tempo para os amigos, para os livros, para os moleskines, para as tardes na relva da Gulbenkian, para os pés na areia quente, para a brisa fria do rio aos teus pés.
Zangas-te, e zangas-te mais um bocadinho, por nem isto poderes fazer. Não há tempo. E há um peso maior a acumular-se nos teus ombros por todo o trabalho que se continua a acumular.
(E é por isso que agora fecho o moleskine e o atiro para o lado com força: para trabalhar).
                                                   *Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 9 de dezembro de 2013

domingo, 8 de dezembro de 2013

2 de dezembro de 2013

Tu Conheces o Sabor*
E ela escorre pelo ralo. Não é a água, são pedaços dela que se vão à medida que a água escorre. Percorrendo-lhe cada pedacinho da pele, tocando os cantinhos escondidos de um corpo mirrado, descendo silenciosamente em direção ao fundo. Água quente que se deixa escorrer deliciosamente de cima para baixo, hesitando em casa curva, em cada elevação intermitente do seu peito. Como que treme, hesitante, e por fim desliza, em frente, ou desviando-se ligeiramente, à procura de um caminho mais fácil. E depois desce profundamente, entrando por buraquinhos com saídas profundas, escorregando em direção a um profundo desconhecido. E afunda-se. Afundam-se as duas. Como que entrelaçadas, como que juntas num pacto de sobrevivência, como que tecidos não resistentes à água. E as gotas passam, escorregam de um cabelo molhado, percorrem-lhe silenciosa e deliciosamente as costas. Devagarinho. Como devagarinho deve ser. Como num jogo de prazer e dor. Como dois dedos de uma mão conhecida que se deixam ir devagarinho num sobe e desce desligado. Suavemente. Ao de leve. Brincando. Desenhando círculos, espirais e palavras que se esquecem de ler. Como uma língua. Sabes. Devagarinho. Húmida. Deliciosamente áspera. Que vagueia à deriva. Como uns lábios esquecidos de encontro a uma pele molhada. A água. Vai descendo. Devagarinho. Em direção ao chão. Como a roupa escorrega pelos nossos corpos. Como cai o vestido à noite. Como escorregam as calças. Como saem peças de roupa inúteis. Como as despimos sem precisarmos delas. A água vai descendo devagarinho em direção ao chão. Devagarinho. Ao chão. Ao fundo. Pedaços dela. A sua pele molhada. As gotas que descem devagarinho pelas costas. O cheiro que tu conheces. A água. A espuma. Umas gotas percorrendo um delicioso caminho até ao fundo. Ao chão. O ralo. A água que escorre. A pele molhada. O cheiro. A língua. Uns lábios.
Inspira…
Os lábios.
expira…inspira…
A língua.
expira…inspira…
Os dedos.
expira…inspira…
hum…expira…
Tu conheces o sabor. O cheiro. A textura. A pele.
Inspira…
…expira.
Ainda te lembras?
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 2 de dezembro de 2013

25 de novembro de 2013

Reminiscência(s)*
Não fiques aí parado. O tempo não vai parar apenas porque tu paraste. Os ponteiros do relógio continuarão a passar pelos minutos, pelas horas, pelos dias. O seu tic-tac, tic-tac sempre a lembrar-te de que os sons que ouves, todos eles, não soam aos sapatos dela a baterem friamente nas pedras da calçada. Não mais. E à medida que os minutos e as horas – quase dias, quase meses – passam, as pétalas vão-se acumulando aos teus pés, caindo uma após a outra – como que dias. Os teus olhos, fixos no chão, nas pétalas, na queda, não procuram os rostos de quem passa. Se o fizessem, saberiam que os olhos que te fitam são muitas vezes os mesmos: os de quem, passando, quase para, quase quer parar e passar-te uma mão pelo ombro, dar-te um aconchego. Primeiro confiante, depois menos. O braço – o braço e o buquê de flores – vão descendendo à medida que o sonho se vai desfazendo. Aos teus pés a certeza de que se desfaz, um pedaço após o outro. Mais tarde hás de recuperar – ainda que parcialmente. Fá-lo-ás apenas quando o som dos seus passos ecoar, aproximando-se e depois afastando-se sem parar. Erguerás então em teu redor autênticas muralhas e as flores, essas, não mais sairão da loja. Existirão outras mulheres. Mulheres para te massajarem o ego, te aquecerem a cama e te aliviarem a tensão. Mulheres que não deixarás entrar na tua vida, pelas quais não esperarás em lado algum mas que, pelo contrário, quererás fazer esperar. O telefone, que antes não deixavas em parte alguma, em momento algum, passará a ser deixado ao abandono, tocando e tocando vezes sem conta. E depois, num qualquer dia de sol, quando te sentires tão bem que as pétalas parecerão até estar a voltar ao seu devido lugar, cruzar-te-ás com algo que te irá lembrar – como se algum dia tivesses chegado a esquecer. E aí todas as mulheres – as que te massajam o ego, te aquecem a cama e te aliviam a tensão – se tornarão insuficientes. O que tu querias era que ela, meses, dias, horas, minutos atrás tivesse ficado para te aliviar a tensão, te aquecer a cama e te massajar o ego. E disso não sei se irás recuperar.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 25 de novembro de 2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

16 de novembro de 2013

Espanto*
Ela continua a espantar-se com ele.
São os pequenos – e os grande – gestos, as palavras, e a naturalidade com que estas lhe saem, os mimos, os olhares, as conversas interessantes.
Ela continua a espantar-se com ele. Com ele e consigo mesma. Espanta-se ao encontrar-se a si mesma a pensar e a dizer em voz alta
- Tu és tão interessante
quando se percebe envolvida num qualquer tema de conversa, ou a ver-se a si própria a observá-lo em momentos do dia a dia, a segui-lo com os olhos e a dizer-lhe
- Não consigo tirar os olhos de ti
como se isso, que é tão bom, lhe afligisse um pouco o peito.
Espanta-se com tudo o que ele lhe dá. Todas as pequenas atenções. Todas as palavras. Todos os olhares.
Ela continua a espantar-se com ele e com o olhar que ele lhe dá. Um olhar que é querer – querer de tantas e tão variadas formas, todas elas tão completas. Ele continua a espantá-la de cada vez que a observa entre silêncios – assim como nas outras, em que a interrompe (a ela ou ao silêncio) “apenas” para lhe dizer
- Tu és tão bonita
ou
- Gosto tanto de ti.
E todos os olhares, todos os gestos, a surpreendem invariavelmente espantada. Espantada e feliz. Espantada também por estar feliz, por ele a fazer – tão – feliz.
E ela continua a espantar-se com ele. A espantar-se em cada uma das conversas em que se percebe saborosamente embrenhada nisto, em que se sente – e o sente – empenhada em que haja mais dias como este(s), em que, um de cada vez, estes se vão juntando num somatório de dias felizes.
Ela continua a espantar-se com ele – e a gostar.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de novembro de 2013.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

11 de novembro de 2013

(Pel)os velhinhos deste país*
No meio das revoltas da adolescência alguns de nós gritámos aos nossos pais — ou a quem estivesse a ouvir — que não pedíramos para nascer. Pois bem, acredito que estes não tenham pedido para morrer — pelo menos não antes de perceberem que iriam viver assim. Há muitas histórias para contar sobre eles.
 Há os que nunca descontaram e que vão recebendo um subsidiozeco — aquele com que devem pagar a renda, as contas da casa, a alimentação e, chegando, também a farmácia.
Há os outros, que o fizeram, mas aos quais o que o Estado por eles guardou não chega para pagar as contas certas — quanto mais as outras, incertas, que insistem em surgir. Talvez antes, antes dos cortes, lhes fosse possível cobrir as despesas. Talvez antes, quando os filhos ainda não tinham voltado para casa, quando os netos não comiam sempre à sua mesa, quando os transportes, a comida e a farmácia eram mais baratos, talvez nessa altura a reforma lhes chegasse. Talvez antes de a renda lhes ser aumentada. Talvez agora se remedeiem, comendo um pouco menos, aproveitando mais a luz natural, acumulando facturas na mesinha do telefone. Talvez assim vão vivendo — ainda que eu não saiba se a isto se pode bem chamar viver. Talvez estes sejam os que têm tanta vergonha que não deixam que a sua miséria seja vista por olhos alheios.
Há os que pagam as contas, uma após a outra, mas aos quais o corpo vai faltando já. São os vizinhos que vamos vendo envelhecer — primeiro devagar, depois depressa — que vamos conhecendo mais debilitados, menos cuidados, menos alimentados; de cujas casas vai saindo já um cheiro a sujidade. São os vizinhos, ainda casais, que não conseguem já viver sozinhos. Não conseguem mas fazem-no, que o que recebem não chega para pagar um lar — e a Segurança Social pouco lhes consegue assegurar.
E depois há os outros. Cruzamo-nos com eles no metro, quando de olhos poisados no chão e mão estendida, passam por nós. Pode também ser num semáforo, quando devagarinho se aproximam do vidro — ainda que chova — ou em ruas da zona nobre da cidade. Alguns de nós sentirão como que um murro no estômago e ficarão imóveis, como que em choque, com os olhos a adquirirem um brilho quase molhado. Outros olhá-los-ão com pena — e com uma revolta maior do que a pena. Muitos pensarão nas estatísticas e questionar-se-ão sobre o que estamos a fazer pelos velhinhos deste país — este que é já o sexto mais envelhecido do mundo. Outros tantos ficarão a pensar que envelhecer aqui é doloroso a duplicar. Ou a triplicar. Ou por aí fora.
 * Crónica publicada no Público P3 a 12 de novembro de 2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

7 de novembro de 2013

Bebeu para esquecer*
Não sei há quanto tempo é que ela fez disto vida. Sei que às vezes, quando a meio do dia desço para fumar um cigarro e nos cruzamos no corredor, troco o sorriso da praxe e sigo caminho – com ela no pensamento.
Os anos que nos distanciam chegam-me ainda para a observar com outros olhos. E os meus olhos preferiam não ver a tristeza que traz nos seus. São olhos sem brilho de quem já não se deixa impressionar. São olhos de quem, talvez, julga já ter visto tudo o que de bom havia para ver.
Há anos fez nascer duas crianças. Crianças que cresceram, que deixaram o ninho e que deixaram já hoje nascer outras crianças.
Há anos arranjou um marido. Ainda antes das crianças, arranjou-lhes um pai. Mas o pai, depois de o ser, depois de o ser há já anos, decidiu arranjar outra mulher. Não uma coisa séria, assumida. Antes uma das outras. Parece que ele procurava a atenção que ela não lhe dava, o elogio que se perdera no tempo. Parece que ele afinal gostava de mensagens capazes de causarem apertos e dilatações, de se arrastarem pela corrente sanguínea. Parece que ele gostava de uma safadeza ou outra – mas fora de casa, que com a mulher de casa parecia mal.
Ela, com o sexto sentido que todas as mulheres têm, um dia leu demais. Então ela soube. Soube logo mal leu uma mensagem ou outra. Soube tanto e tão bem – mas logo quis esquecer.
A cabeça na almofada não tinha descanso. As imagens que as mensagens trouxeram até si sempre ali, sempre a recordarem-na de que o homem que aturara durante grande parte da sua vida – a ressonar, a queixar-se do trabalho, a ter problemas de dilatação, a não lhe causar um friozinho na barriga – era afinal um sacana de primeira.
Então ela bebeu. Bebeu uma vez. Bebeu mais duas ou três. Bebeu para esquecer. Bebeu até o suficiente para se esquecer do que bebia.
A seguir quis beber para olhar em volta sem focar. Quis seguir a vida sem prestar atenção. Quis olhar em redor sem distinguir os limites das coisas.
Mas como tudo na vida tem um limite – e como nem todos são bons – também o dela chegou. Ou esquecia a bebida ou esquecia o que a pagava. E é por isso que agora se arrasta aqui. Com o que pagava a bebida mas sem a poder comprar, a vê-la passear-se à sua frente e a querer afastá-la, a querer aproximá-la – como quer também fazer com o sacana do marido com que continua a partilhar a cama.
Arrasta-se pelo corredor entre a cor mais neutra que quase permite a sua camuflagem e outras, mais vibrantes, que a ajudam a perceber que ainda está viva e – quase – de boa saúde.
Os olhos, esses, não esquecem o que viram e o seu não brilho sempre ali para nos lembrarem do que sabem.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de novembro de 2013.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

4 de novembro de 2013

Que seja diferente*
Para que desta vez seja diferente. É isso que te pede: que desta vez possa ser diferente.
Vezes houve em que só ela acreditou. Foi a única a fazê-lo, vezes e vezes sem conta. A partir antes do sinal de partida – e a fazê-lo sozinha. A dar tudo – e a receber tão pouco. A dizer o que lhe corria nas veias e a escutar como resposta silêncios cheios de significado(s).
Sabes que hoje faz diferente: procura não avançar antes do sinal de partida e, mesmo quando o faz, não quer ser a primeira a chegar à linha da meta; dá pela metade; diz (muito) menos do que há para dizer e procura não ler os silêncios cuja interpretação lhe pode falhar. As palavras dos outros assustam-na. Ergueu em seu redor autênticas barreiras protetoras – não para impedir incursões alheias, antes para prevenir a sua própria saída.
Sabes que as barreiras  – como as histórias do passado – lhe pesam em cada um dos seus passos. Ganhou medos. Procura proteger-se, por vezes em excesso, abraçando os joelhos e enrolando-se sobre si mesma. E ela precisa, precisa mesmo, que desta vez seja diferente. Mas ela nunca to diria e tu também sabes disso. Sabes que se zangou contigo faz tempo, quando tu lhe deste todos os motivos para que o fizesse. E, de todas as oportunidades que te deu, o que retirou foi a conclusão de que não as merecias mais.
Talvez a possas surpreender, agora que não o espera de ti, e deixares que desta vez possa ser diferente. Mostrar-lhe que vai ser diferente, que é diferente. Que, mesmo sem pedir por favor, desta vez lhe vais dar o que quer.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 4 de novembro de 2013.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

31 de outubro de 2013

Estás sentado à secretária há já várias horas. Contrariamente ao que acontece noutras alturas do dia, os teus olhos observam repetidamente o canto inferior direito do monitor onde os minutos, esses, se vão arrastando, um após o outro.
Já perdeste a conta às palavras. Um dia após o outro. Uma após a outra. São palavras que vão e que vêm, que te agitam, que a aproximam. E, no entanto, são palavras apenas. Não importa a atenção que dedicam a cada uma delas, nem mesmo a intenção com que cada uma é escrita. A verdade é que, com o passar dos dias, cada uma se vai revelando mais pequenina, de menor sentido, incapaz de reproduzir a real amplitude do que há a dizer.
Sentado à secretária, os teus olhos acabam por pousar no telefone ao teu lado. Sabes que se marcares os nove dígitos do seu número haverá apenas um "Privado" a fazer-se anunciar do outro lado. E, se fechares os olhos, talvez consigas mesmo imaginá-la a observar o ecrã e a questionar-se silenciosamente. Talvez ela não perceba - pelo menos não logo. Talvez o seu indicador direito hesite entre o atender e o ignorar.
A tua mão pousa sobre o auscultador, o teu indicador pressiona cada um dos nove algarismos e a tua respiração, essa, dispara. Queres pousar o telefone. Não queres pousar o telefone. Não sabes se queres ou não pousar o telefone. E enquanto as tuas ideias oscilam, enquanto procuras perceber o que queres ou não, a sua voz ouve-se do outro lado. Há um
- Estou
que não sabes dizer se soa a interrogação ou a exclamação. Talvez haja ali alguma exasperação. Há talvez a frieza que ela anunciara já. E há um silêncio de ambos os lados. O teu silêncio de quem não sabe o que está a fazer, nem o que esperava com isto. E há o silêncio dela do outro lado, breves segundos apenas durante os quais se encosta à ombreira da porta e as ideias lhe passam depressa. E quando a sua boca se abre para o segundo
- Estou
talvez ela já tenha percebido. Talvez tenha esperado até ouvir algo desse lado. Um silêncio que fosse em que pudesse respirar um pouco, em que o seu 
- Estou
pudesse soar a
- Estou (aqui)
e não apenas a um
- Estou.
Mas o que ela ouviu foi a chamada a desligar-se. Nem a chamada a ser desligada, apenas o pós chamada desligada, quando o sinal de chamada perdida se fez ouvir.
Ela soube. Soube (quase) desde o primeiro segundo silencioso. Soube até que depois de pousares o auscultador a tua mão não o conseguiu largar logo - como se assim te pudesses manter em contacto. Ela quis dizer-te que soube. Mas pensou depois que não seria necessário.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

25 de outubro de 2013

Paz.*

Estou em paz contigo.
Demorei a chegar aqui mas agora que aqui estou percebo o quanto me sabe bem.
Estou em paz contigo e com o que foi. Em paz com os sorrisos que não consegui ter, com os copos que não bebi, com os livros que não li. Em paz até com as lágrimas que devia ter chorado e não chorei. Estou em paz com as noites em branco de conversas sem fim - aquelas a que não raras vezes perdi o rumo pouco tempo após o seu início. Perdoei-te já por todas as vezes em que me tiraste da cama comigo já longe, já distante, para me arrastares para perto e me fazeres ouvir-te. Quero dizer-te que tentei. Tentei mesmo. Tentei ouvir-te com todos os meus ouvidos - mas, ainda assim, tudo o que se ouvia cá dentro eram queixumes de
- estou tão cansada
ou
- não sei que mais lhe posso dizer
ou
- já não sei do que falamos agora
ou ainda um
 - não aguento mais isto
que nunca fui capaz de te dizer em voz alta - mas que, hoje percebo, me corria pelas veias há já muito tempo.
Eu não aguentava. Por isso o meu corpo se desligou para ti - primeiro um dia, depois outro, uma semana e, podendo, mais até. Por isso o meu corpo se desligava demasiado cedo. Ele queria fechar-me dentro de si, queria isolar-me num sítio seguro. Queria proteger-me das agressões externas da vida que corria. E disso não te culpo a ti.
Não te culpo, não mais. Estávamos danificados, cada um à sua maneira. E danificámo-nos mais, danificámo-nos muito.
Estou em paz contigo agora que percebo isso. Espero que, um dia, a paz te chegue para que me entendas também.
Estou em paz contigo. Às vezes não estou ainda é em paz comigo e com a inércia que me dominou.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 28 de outubro de 2013.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

22 de outubro de 2013

Mais uma vez, o problema não és tu, sou eu.
Eu sei que esta frase soa a vazio, a frase feita. Perdi a conta às vezes em que a ouvi dirigida a mim, às vezes em que a ouvi no ecrã da televisão - muitas vezes associada a gargalhadas de fundo, como se de verdade nada pudesse ter. Mas tem. Pode ter.
O problema sou eu. O problema sou eu e o perímetro delimitado no chão em meu redor que ora está cheio (demais), ora está vazio (em demasia). Habituada que estou a ocupá-lo sozinha, as flutuações agitam-me a existência, desarrumam-me a casa. E, na minha casa, tudo tem de ter a sua ordem, sempre a mesma - que a sofrer mais vale que seja de enjoo.
O problema não é tu dares demais ou de menos. O problema é eu nem sempre saber se quero mais, se quero menos. O problema é eu gostar de dar - mais e mais - mas achar sempre que o deveria fazer menos. O problema é eu sentir as palavras a subirem-me à garganta mas empurrá-las para baixo engolindo em seco. 
O problema não és tu, sou eu e a minha constante procura pelo equilíbrio, pelo ponto exato a meio caminho entre o que é demais e o que é de menos. E talvez esse ponto não exista, talvez ele próprio ande à procura da localização exata e eu ande apenas atrás dele - para a frente, para trás. 
O problema sou eu. Sou eu a não querer colocar-me numa posição pouco segura, numa posição em que as inseguranças se me aproximem da pele, da ponta dos dedos, da boca, dos ouvidos. Sou eu a não querer sentir a falta e, sentindo, querer fugir.
O problema não és tu, sou eu. O problema é eu achar que devo fugir de tudo - menos de mim. O problema é eu antecipar os problemas - aqui, ali, em todo o lado. E, fugindo deles, fugir de ti.

17 de outubro de 2013

Família é mesmo assim*

Família é assim mesmo. Cada um com a sua. E ai de quem, de fora, fizer comentários. Se é para elogiar vamos a isso, se é para criticar escusa de vir. Família é assim mesmo e cada um com a sua.
Sentados à mesa montamos um arraial. Os braços apertados uns contra os outros, as cadeiras a empernarem com os bancos – e vice-versa – e as vozes – primeiro poucas, primeiro baixas – a subir, subir, até formarem um indistinto aglomerado de timbres. Por vezes, quando a cabeça está mais cansada, o aglomerado soa a um barulho constante e ininterrupto capaz de provocar um esgotamento. E, de repente, queremos abandonar o lugar à mesa ou levantar mais a voz – mais e mais – até que nos consigamos fazer ouvir para tão simplesmente pedirmos um pouco de silêncio.
A ralhar ou a rir. A comunicar. Cada família à sua maneira. Antes a ralhar que a calar, dia após dia. A ralhar vezes demais. A rir. A gritar. A espernear. Um bocadinho de cada. De extremos. A comunicar muito. A comunicar tudo. A não comunicar nada. A baixar a guarda e a perder o filtro.
Cada família com os seus hábitos – e estes, afinal mutantes, a serem alterados devagarinho e muitas vezes a contragosto de alguns. Primeiro tudo, depois um pouco menos – que família é um grupo mas cabe lá muita gente.
Família é assim mesmo. Nós não a escolhemos mas optamos dia após dia. Ficar. Dar. Receber. Ou não.
Há umas que dão demais, outras que dão de menos. Há os que nunca se satisfazem, os que não querem dar e há os outros: os que dão por inteiro, ainda que pouco ou nada recebendo.
Há famílias em que a dor de uns é a dor de todos, outras há em que a dor de um não dói a mais ninguém. Há os que vivem a felicidade alheia e os outros, que convivem mal com ela.
Família é assim mesmo e cada um com a sua. Umas vezes mais. Outras vezes menos. Nem sempre com muita vontade – ou à vontade. Mas cada um com a sua.
Não há melhores, não há piores (há, mas são raros os casos). Não há quem possa julgar – não de fora. Porque família é mesmo assim – ou devo dizer assins?
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 21 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

17 de outubro de 2013

Por vezes sentes-te destinada ao fracasso. Talvez pelo hábito de algumas coisas na tua vida fracassarem realmente - com frequência.
Habituas-te a este sobe  e desce - que sentes sempre não subir o suficiente para compensar a descida. Habituaste-te a que a uma subida, por mais pequena que seja, se segue sempre uma descida. Habituaste-te tanto que já a esperas. Mais: muitas vezes não só a esperas como até a antecipas.
Antecipas as descidas com pensamentos e atos de autossabotagem. Como se, sabotando-te a ti própria, não permitisses que a vida o fizesse por ti. Então és tu que o fazes por ela, esperando que assim te doa menos - que a surpresa também dói.
Encontras-te entre sorrisos. A vida corre calma, com o constante ir e vir das coisas que se querem assim. Dormes menos para viveres mais, para aproveitares melhor. E, de repente, de um momento - tão pequeno - para o outro - logo ali ao lado - quando os teus olhos se reabrem após um ligeiro pestanejar, apercebes-te de que o que tens é bom demais. Não sabes o que fazer. Não sabes o que dizer e, no entanto, a tua boca quer abrir e fechar-se sem parar, como se houvesse demasiado conteúdo acumulado no peito. Os teus olhos querem ver mais, acumular mais, mas o medo cresce em ti. Se estás a subir em breve estarás a descer. Se é para descer talvez te devas colocar já a caminho.
Na verdade, agora que aqui estás perdeste a certeza de querer ficar. Talvez não sejas capaz - o que se faz quando tudo corre bem? Talvez não mereças tudo isto - talvez as descidas sejam apenas a vida a lembrar-te que assim é. Ou talvez estejas apenas assustada - e por isso queiras fugir.
Fá-lo, se achares que deves, mas não o faças para sempre. Em alguma altura terás de perceber que a autossabotagem é que te leva ao fracasso.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

14 de outubro de 2013

Crescer. Um dia. Eu vou.*

Um dia vou crescer. Eu sei que tu me olharás sempre com os mesmos olhos e que verás em mim sempre esta menina. Mas quero dizer-te, quero prevenir-te para o facto de que, um dia, eu vou crescer e esta menina que ainda pede colo o vai deixar de pedir.
Passarão anos em que revirarei os olhos em todas as tuas conversas, em que verás mais vezes as minhas costas do que o meu rosto, em que a minha voz não será ouvida – ou será, mas alto de mais.
Quero dizer-te que o tempo para me dares mimo é agora – porque depois será tarde de mais. Agora é a altura de me passares a mão pelo cabelo, a altura de me chegares mais a ti. É agora que deves dizer o quanto te orgulhas de mim – dizer alto e bom som, dizer muitas vezes – porque depois será já demasiado tarde. Se tiveres oportunidade escreve. Escreve para que fique o registo, para que, se a minha memória me falhar enquanto cresço, exista a prova a recordar-me que em tempos te orgulhaste de mim. Hoje não me parece importante. Há sempre sorrisos em mim e ainda penso pouco se me apoias ou não, mas ao observar os que me rodeiam algo me leva a pensar que um dia a certeza de me saber apoiada poderá fazer a diferença.
Estou a alertar-te também para o facto de que vou fugir ao contacto físico. Quando quiseres caminhar lado a lado comigo e pousares-me a mão no ombro, lembra-te de que te alertei. Eu vou fugir, sacudir os ombros até que a tua mão caia. E, quase que aposto, quando crescer vou lamentar esses momentos. Mas acredito também que para crescer vou ter de sair de debaixo da tua asa, sair o suficiente para que as minhas cresçam.
Deixa-me dizer-te ainda que existirão sempre em mim caraterísticas desta menina. Mas quero pedir-te, também, que não chames a atenção sobre elas, que não as refiras. Aceito que as observes, que te sentes num qualquer canto a observares-me as maneiras e a forma, mas que o faças em silêncio e com um rosto inexpressivo. Conto contigo para me veres crescer. Conto contigo também para me veres ser sempre um pouco menina. Conto contigo para me dizeres, ainda que em silêncio, que os meus erros não foram suficientes para defraudar as expectativas.
Sim, um dia eu vou crescer. Vou crescer em altura, em largura, em profundidade. Mas os meus olhos continuarão sempre a ver o mundo com curiosidade, a absorve-lo, a ouvi-lo atentamente. E a minha boca continuará a estar perto do coração. E as minhas lágrimas, essas, continuarão sempre fáceis – porque estou triste, porque estou feliz. É que a vida, as pessoas, continuarão a tocar-me.
Lembra-te, eu vou crescer. Um dia. Talvez ainda não hoje. Talvez não amanhã. Um dia. Pouco a pouco. Um bocadinho de cada vez.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 14 de outubro de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

13 de outubro de 2013

Ela quer que penses que não vai voltar, que desta é que é. Quer fazer-te acreditar que já cá não está quem para sempre disse ficar.
A segurar as lágrimas com força e com o corpo a movimentar-te bruscamente, tira da vista tudo o que a pode lembrar. Memória atrás de memória agora colocadas para além da porta de um qualquer armário em que quase nunca mexe. Fia-se no ditado que cedo ouviu, na crença de que "longe da vista, longe do coração". Não se fia, mas quer fiar-se, porque há alturas em que crenças como esta parecem poder ajudar.
Fecha-se em silêncios que espera levar-te diretamente ao coração. À consciência. Espera que te perguntes porquê. Espera que o silêncio te rodeie como que um ruído constante, quase ensurdecedor.
Move-me pé ante pé, procurando não deixar rasto. Um pé, depois o outro, num movimento consciente e controlado, evitando rotas do antes, evitando memórias do que foi. Preenche os dias com novos movimentos, novos espaços, novos sons. Preenche-se, preenchendo o espaço em redor - mas procurando, sempre, que acredites que desta é de vez, que preenchidos todos os espaços nada sobrará para ti.
E talvez acredite que à noite, agora que os dias arrefeceram e os lençóis voltaram a ficar frios, te deites nessa cama para dois e o espaço que te rodeia seja grande demais. E que te decidas a interromper o silêncio, a encurtar a distância, a pedir-lhe que volte. E que ela seja crescida o suficiente para te dizer que desta é que foi - e que não vai voltar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

9 de setembro de 2013

Para que os ses não te apanhem*

Se.
Se a vida não tivesse dado estas voltas. Ou se a vida as tivesse dado antes. Se tu tivesses percebido antes ou se tu simplesmente nunca te apercebesses. Se tivesses agido na altura. Se agisses agora. Se não agires nunca. Se não tivesses agido nunca. Se te tivesses declarado ou se não tivesses deixado sair o que trazias no peito.Se o medo te tivesse bloqueado ou se não te tivesses deixado paralisar pelo medo. Se não tivesses colocado a mão no fogo por ele. Se tivesses ariscado mais. Se. Se. Se.
Na correria do dia a dia não há tempo para ses. Na correria não há tempo para mas. Não há tempo para ter tempo. Ponto. Vais depressa, mais depressa, sem parar. 
Pausa. Pausas com olhos no passado. Pausas em que os pés se querem mexer em sentido inverso, em que queres andar para trás no tempo e optar por outros caminhos. Pausas em que querias que a tua vida fosse um livro (que é!) daqueles em que podes escolher diferentes finais - e em que, quando um não te agrada, podes simplesmente retomar a história a partir do ponto anterior sem que as personagens se tenham movimentado no tempo, no espaço.
Pausa. Pausas para leres as palavras de antes, para olhares os rostos para sempre guardados em fotografias. Pausas para olhares para dentro, para olhares para ti. 
Pausas em que te arrependes das opções que fizeste - e das outras, que não fizeste. Pausas em que, invariavelmente, choras o passado, lamentas o presente e temes o futuro. E te afundas em hipotéticas possibilidades.
Depois aceleras. Mais depressa. Vai depressa. Vai depressa que o tempo voa. Vai depressa para que os ses não te apanhem. Vai depressa para o que os teus olhos não os foquem. Para que os teus ouvidos não os ouçam. Vai depressa mas lembra-te de que se não fossem estes seriam outros. Ses haverá sempre. Não te deixes é vencer pelo arrependimento.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de outubro de 2013

terça-feira, 8 de outubro de 2013

8 de outubro de 2013

Promete-me que vais ter cuidado. Com a saúde não se brinca. Por isso, promete-me que vais cuidar de ti.
Há quem viva com a constante sensação de "corda na garganta", sempre à espera do fim. Não à espera, com medo. E não com medo do fim: antes com medo de tudo o que há antes do fim. E há quem, como tu, finja não ver o que está bem à sua frente. O 80 e o 8, sempre tão distantes. Promete-me que vais encontrar o equilíbrio, que não vais andar de extremo em extremo, que vais estar atenta aos sinais e que, deparando-te com algum, não o vais ignorar.
Histórias destas há muitas. Toda a gente conhece alguém que as viveu. Toda a gente conhece uma ou várias pessoas que as protagonizaram e outras, que as viveram em papéis mais secundários. Eu sei que isso te assusta e que por isso finges não ver. Sei que perante histórias destas, mais ou menos próximas, pessoas em muito semelhantes adotam atitudes díspares. Mas, por favor, não as ignores. 
Não te quero sentada em salas de espera de paredes brancas de quinze em quinze dias, nem mesmo de mês a mês. Mas promete-me que ao menos os teus dedos te vão percorrer o corpo, pedacinho a pedacinho, procurando (não encontrar) sinais de preocupação. E, bem, lembra-te que as cadeiras das salas de espera existem para serem ocupadas, não apenas para preencherem o espaço vazio.
Nesse país onde vives os exames médicos, os exames complementares, foram muitas vezes realizados em excesso. Médicos houve que foram acusados de excesso de zelo. Agora, agora que os cofres estão (mais) vazios, alguns destes exames estão a ser racionados. Mas tu sempre foste boa a reclamar. Então reclama, exige o que é teu por direito. E se há sinais, então faz com que os explorem. Não permitas que as pistas sejam ignoradas por questões orçamentais.
Promete-me que vais ter cuidado. Mas promete-me que o teu cuidado não vai ser tido com dores de estômago e cigarros fumados um atrás do outro. Tem um cuidado preventivo. Um cuidado (quase) despreocupado. Promete-me que o teu cuidado vai ser rotineiro. E se tiveres de te sentar em salas de espera de paredes brancas, daquelas que trazem ao presente os fantasmas do passado, fá-lo a recordar todas as histórias de final feliz. Não o faças a lamentar a minha.
Do que tenho observado, é o cuidado que marca muitas vezes a diferença. Por isso vive num 36, que do 8 e do 80 não reza a história. E lembra-te também de que as grandes batalhas só são travadas por grandes soldados. Não te esqueças do quão combativa consegues ser.

domingo, 6 de outubro de 2013

5 de outubro de 2013

Tinha um gato preto de olho em mim.
Todo este tempo, tinha um gato preto de olho em mim. E eu olhava-o com receio, não deixando nunca que o meu olhar se cruzasse com o seu.  
Vivia com medo. "Gato preto é azar", sempre se disse. Eu ia para aqui, ia para acolá, e o gato preto sempre comigo, olhando-me seriamente do topo do seu corpo esguio.
Não sorria - porque o gato estava a ver. Não bebia: o gato estava a ver. O meu corpo movia-se mas sempre (sempre) contraído. Não queria afugentar o gato. Se gato preto só por si é azar, o que seria um gato preto afugentado? Quem sabe se não se tentaria vingar?
Olhava o gato e não percebia o que queria de mim - logo de mim, que nem gosto (muito) de gatos.
À força de o ter sempre comigo - foram dias, tantos que se transformaram em anos - fui ganhando confiança. "Gato preto é azar" mas azares não os houve. Houve a vida, ela própria, e dela nunca ninguém disse só maravilhas. E o gato preto, de olho em mim, não parecia querer agir. Então o medo foi dando lugar à confiança, e à medida que os dias e os anos passavam, a sua presença foi sendo menos notada. Um dia olhei-o nos olhos. Olhei-o nos olhos e estiquei-lhe a mão. E então o gato preto (que "é azar") veio andando, roçando-se ao de leve nas minhas pernas esticadas, cabeceando-me a mão que eu pousara já no colo.
Tinha um gato preto de olho em mim todo este tempo que procurava só um pouco de atenção.

* Texto escrito para o "Escreva um post sobre", desafio semanal do blog A Vida em Posts

sábado, 5 de outubro de 2013

4 de outubro de 2013

Há algo na forma como ela caminha a seu lado que mostra o quão diferente é a sua perspetiva sobre o que têm.
Vai à frente, abrindo caminho, abrandando o passo apenas para se dirigir a ele mas não - nunca - para o ouvir. Os seus braços, esticados ao longo do corpo, acompanham-na sem parecerem precisar de companhia. Não importa se ele apressa o passo, se os braços dele se movimentam mais para a frente, mais para o lado, na tentativa de se aproximarem dos dela. Ela não parece interessada na proximidade.
Quando se aproximam da estrada, dos semáforos, ele coloca-se à esquerda, barrando-lhe a visão. E então ela, já com um pé na estrada, acaba por recuar. Ele procura protegê-la. Ela, tão autónoma, acaba por ceder. Ele levanta a mão em direção ao seu ombro, procurando abraçá-la com um braço só. E ao observá-la daqui, um pouco ao longe, quase consigo vê-la a fincar os pés no chão com mais força, pedindo-lhes ajuda para manter o corpo firmemente longe do dele.
Ele sorri, os olhos dele, sorriem, e a sua mão procura colocar no lugar os caracóis que o vento do final do dia insistentemente agita no ar. Ela sorri ao de leve e talvez o seu rosto acabe por se acomodar de encontro à mão quente dele. Talvez o corpo dela esteja a tentar aproximar-se do dele afinal de contas. Mas talvez o objeto com rodas que ele vem arrastando rua fora a esteja a impedir.
E de repente percebo. Percebo porque é que ela insiste em caminhar mais à frente, porque é que ela - e os braços dela - não procuram a proximidade, antes fugindo. Há um perímetro traçado no chão em seu redor. Não importa para onde vá: ali ninguém entra, dali ninguém devia sair. Ele saiu. Ela fechou o seu espaço e habituou-se a ele. É constante. Vazio às vezes, mas constante.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

2 de outubro de 2013

Histórias de (des)encantar*

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O Amor
Era uma vez um menino chamado Francisco e uma menina chamada Josefina. Eles estavam apaixonados e eles não queriam dizer porque pensavam que o outro não gostava dela então a Josefina enviou uma carta ao Francisco mas o Francisco não via o correio, eram os pais dele e eles deitaram fora a carta e depois o Francisco foi deitar uma coisa ao lixo e viu a carta e depois eles casaram.

Talvez alguém te devesse dizer que o amor nem sempre flui assim tão bem.

De cada vez que abro os vossos cadernos e me deparo com textos assim há algo que se me aperta no peito. As vossas histórias de príncipes e princesas - e a forma como crêem nelas - lembram-me a menina que fui, a menina que acreditava.
Todas nós crescemos rodeadas de histórias assim: A Bela Adormecida, A Cinderela, A Branca de neve e outras, tantas outras, em que a donzela em apuros acaba salva por um príncipe cheio de encantos. Ele é o cavalheiro que a toma em seus braços e que com um simples beijo a resgata de uma qualquer situação difícil, seguindo-se o tão conhecido "e viveram felizes para sempre". Resultado: crescemos e vivemos à espera do príncipe, como se a vida não chegasse sequer a ser vida sem esse outro elemento.
Há sobre estas histórias muito a dizer e nem sei por onde começar. No essencial gostaria apenas de vos proteger da deceção que sempre surge aquando do confronto com a realidade.
Talvez não vos devêssemos alimentar a histórias de encantar. Não se vocês vão crescer à espera de serem protagonistas de uma tão bela assim, não se vocês vão crescer a ver em cada rapaz um príncipe - e a descobrirem, uma vez após a outra, que essa é uma espécie tão rara que poderão nunca a encontrar.
Depois, a fórmula "príncipe salva princesa" terá tantas vezes de ser invertida que é importante, muito importante, que não fiquem presas à primeira. De outra forma, correrão o risco de ver o príncipe a ser arrastado para as trevas ou a ser salvo por uma princesa mais perspicaz. Transmitam também àqueles com que se cruzarem de que não dependem de príncipe algum para que a vossa vida valha a pena - mas não o digam apenas: vivam em conformidade.
Sobre o final tantas vezes repetido do "viveram felizes para sempre", lembrem-se por favor de que a história só termina após a resolução do problema. Não sendo a vida uma narrativa de um evento só, é importante ter presente que esta só chegará ao fim quando se esgotarem todas as páginas em que é escrita. A um problema resolvido seguir-se-á sempre outro, na sua escala tão própria. O importante a reter aqui é que, ultrapassado um problema, poderão realmente ser felizes: até que um outro se atravesse no caminho para colocar à prova essa tão especial união. Se a história será de encantar isso ninguém saberá dizer. Se será para durar, quer queiramos quer não, também não o poderemos afirmar. Que seja antes enquanto valer a pena. Só e apenas: enquanto os sorrisos forem em número suficiente para que valha a pena.

Ao ler o teu texto gostava de me sentar contigo e de te alertar para a impossibilidade de muito do que escreveste. Queria dizer-te que os receios iniciais que referes tinham 50% de probabilidade de serem justificados - mas a verdade é que existia também a possibilidade de que o amor fosse correspondido e só uma menina destemida como a Josefina arriscaria. Talvez por isso tenha sido tão bem sucedida: só assim se explica que uma carta tenha resistido à sujidade do caixote do lixo, acabando por conduzir ao casamento dos dois.
Talvez sejas tu quem, afinal, tem uma lição a transmitir.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 3 de outubro de 2013

sábado, 28 de setembro de 2013

28 de setembro de 2013

Um dia acordas com a certeza de que já não fazes parte. Acordas com a certeza só possível pelo acumular dos dias em que te questionaste se ainda pertencias.
Abres os olhos, olhas o teto acima de ti, abres muito a boca como se te faltasse o ar, puxas mais para cima o edredão e apertas com força o peito à medida que as lágrimas te escorregam, não devagarinho, depressa, pelo rosto.
Durante anos e anos tu fizeste parte. Tu fizeste parte da melhor forma possível. Fizeste parte da única forma realmente completa. Fizeste parte sem as cobranças, sem as expectativas. Sem os medos. Fizeste parte sem data marcada, sem horas inconvenientes. 
Partilhaste a cumplicidade dos olhares cheios de significado, dos sorrisos contidos mas perfeitamente detetatos pelo olhar conhecedor de quem te observava. Enfrentaste a reprovação com que as tuas falas bruscas eram recebidas, mas enfrentaste-a sempre com a confiança de te saberes compreendida.
Mas o tempo passa. O tempo passa por ti todos os dias. Passa por ti e pelos teus. E à medida que o tempo passa, leva consigo pedaços que julgavas pertencerem-te. Pedaços a que julgavas pertencer - para sempre. Leva-os para sítios onde deixas de os ver. Ou leva-os para sítios a que tu sabes não pertencer. Não importa se a dada altura tu te quiseste desfazer da vida que levas para a reencontrares lá, mais ao longe, mais completa. Importa que não o fizeste, por saberes, já, que não pertencias. Não pertences.
Mas o tempo passa. O tempo continua a passar. E em cada um dos dias em que não estás presente sentes-te a ficar cada vez mais distante. E a certeza de que não fazes parte vai-se adensando, tornando-se mais clara - e mais pesada também. Pesa em cada uma das decisões que tens de tomar - até naquelas que não se podem bem classificar como tal. Sentes o peso quando te vês a hesitar, quando te vês a questionar se é apropriado dizer isto ou aquilo quando antes, antes da passagem do tempo, as palavras te saíam da boca antes ainda de pensares que as querias dizer. E quando preparas surpresas - porque, caramba, tu adoras surpreender! - questionas-te se será demais, se será mal interpretado. Porque, afinal, tu sabes que já não pertences e talvez tudo o que antes fazias tenha também deixado de pertencer.
Os silêncios lembram-te que o tempo passou por ti e pelos teus. O espaço vazio recorda-te que pertences apenas a ti própria - e que não há pedaços que te pertençam para sempre.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

11 de setembro de 2013

Soldadinhos de hoje em dia*

Passam-se os dias. Assim, um atrás do outro. Quantos dias em que mal vemos o sol.
Acordamos cedo, levantando-nos quase sem pensar da cama que (sentimos) mal tivemos tempo de aquecer.
A leitura de casa de banho passou a ser digital, quase sempre com um remetente e destinatário em que o @ tem lugar. Saímos da cama já a trabalhar, atualizando-nos com correspondência que, parecemos acreditar, fugirá se a demora na leitura e resposta for maior.
Tomamos um duche rápido em que a cantoria é substituída pela repetição quase exaustiva de algo como “tem de ser”, como “tenho de dar mais”, algo capaz de nos motivar, de nos ativar realmente.
Mordemos qualquer coisa a caminho do trabalho, enquanto que com uma mão nos agarramos, esquivando-nos ao contacto físico com o vizinho do lado. Às costas uma mochila pesada, como se ao levarmos connosco todos os dossiês e o computador portátil nos tornássemos pessoas mais produtivas. Uma mochila pesada a puxar mais para trás, mais para cima, a camisa e a gravata – e o nó desta a apertar mais o outro, o que não se vê.
Sentamo-nos em cubículos com cadeiras já adaptadas ao nosso sentar e ficamos durante horas. Fazemos o nosso trabalho e fazemos o outro, que daria lugar a mais dois ou três. Os olhos muitas vezes já vermelhos. Comemos em frente ao computador porque – dizem os estudos – isso contribui para aumentar a produtividade.
E depois, quando o sol já se tiver ido, sairemos porta fora dentro destes fatos inteiros, com as mochilas às costas e cruzar-nos-emos com tantos outros como nós, soldadinhos de hoje em dia. Os phones sempre nos ouvidos para nos mantermos isolados neste mundo que é só nosso e nos dedos sempre o telemovel – para cima, para baixo, agora um comment ou um like só para recordar que ainda temos amigos.
De vez em quando – só muito de vez em quando – talvez consigamos encontrrar um tempinho para nos encontrarmos todos, para nos sentarmos à volta de uma mesa de copo numa mão e telemovel quase sempre na outra, recordando os tempos passados e atualizando a vida social com os que não estão presentes – mas assim, tudo ao mesmo tempo, que se há coisa em que não somos bons é em estar por completo num sítio só.

Quando a família nos arrasta para um evento demorado talvez ganhemos então alguma coragem para nos expressarmos sobre a vida que levamos (ou que sentimos levar-nos a nós) e aí a resposta será certamente um “ao menos tens trabalho” que nos deixa sem resposta. Talvez queiramos abrir a boca e dizer que o está errado não é o facto de termos um trabalho de que nos podemos pontualmente queixar mas sim o facto de nem todos o poderem ter. Mas talvez não o digamos com receio de parecermos ingratos.

* Crónica publicada no Público P3 a 19 de setembro de 2013

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

16 de setembro de 2013

Há algo a passar-se aqui. Aqui, algures aqui dentro, não sei se mais abaixo, se mais acima. Aqui.
Há um nó maior em mim - em cima, em baixo, em qualquer parte - a toldar-me o raciocíonio, a bloquear-me as ideias. Há um nó a meio caminho entre o peito e as ideias lá em cima, um nó que me aperta as vias respiratórias, que me faz transbordar os olhos de aflição, que me faz mexer os pés e as mãos sem parar. Assim, depressa, sem sossego.
São os olhos pesados do sono das noites mal dormidas, as mãos pesadas de todas as ideias que não escrevi, os minutos a passarem e a pesarem-me na consciência - mais um em que não dormi, mais um em que não trabalhei. Os olhos a observarem o relógio fixamente - mais um, mais outro - e o corpo numa total inércia.
Há algo a passar-se aqui. Aqui, algures, em toda a parte, coisas a mais a passarem-se em simultâneo. São ideias acumuladas que agora tenho de separar mas em que me perco vezes e vezes sem conta. Não sei se hei de dizer que há uma falta maior de ti, se lhe devo dizer que há todo um conjunto de falhas a justificar quem sou, se devo tão simplesmente parar. Parar.

domingo, 1 de setembro de 2013

24 de agosto de 2013

Retrato (factual) do Vendedor de Praia*

No dia seguinte ele voltou.
Vi-o quando nadava de regresso à areia. Saí meio a correr, com medo de o deixar escapar. Aproximei-me e, sorrindo, pedi que me acompanhasse. O curioso é que se lembrava do que eu queria. Recordava-se ainda do modelo e da cor.
 Aproveitando a demora que o poisar de toda a carga sempre causa, ajoelhei-me junto a ele e antes que me apercebesse a minha boca já se abrira e começara a lançar-lhe questão atrás de questão. Bem, a verdade é que não foram precisas muitas. Rapidamente me mostrou gostar de conversar, alongando-se nas respostas, dizendo-me sempre mais do que eu perguntara. Pensando nisto uns dias depois, quase parecia que tivera acesso a um qualquer guião que eu pudesse trazer comigo mas que não tivera coragem de usar.
Quando a minha boca se abriu para lhe perguntar se poderia fazer-lhe uma questão sorriu-me com o rosto todo. Nos momentos de silêncio até à sua resposta questionei-me se esta comunicação seria possível ou se a barreira linguística se encontrava ali entre nós. Não, felizmente não estava. Num português que claramente não aprendeu cedo, soube que viera do Senegal.
— Há 17 anos! — disse, cheio de orgulho.
Chegou a Portugal em 1996 e não voltou a sair. Sempre fez isto de vender na praia, sempre com licença.
— No escudo era bom, vendia muito, com o euro é difícil… — desabafou, levando-me a acenar levemente com a cabeça, revendo mentalmente todas as pessoas que me têm dito o mesmo.
Esta praia é a sua praia. Sempre a mesma, há 17 anos. Sorrio agora ao pensar em quantas vezes nos teremos cruzado neste areal sem antes termos trocado uma única palavra.
Disse-me viver em Lisboa e eu quase respirei de alívio. Falou-me do autocarro que apanha de manhã e à tarde e do senhor do restaurante da praia, aquele, mais velhinho, que todos os dias lhe guarda os pertences, permitindo-lhe voltar a casa apenas com o que trás no corpo.
Tendo-lhe pago fiquei em silêncio, dando-lhe tempo para então recuperar o fôlego e para o ver, como no dia anterior, pegar na pequena toalha turca para enxugar o suor.
— Não está muito calor, é de andar sempre — justificou — em África é mais quente.
De repente levantou o braço e pôs-se a acenar, gritando numa língua que eu não compreendi. Acenava para o filho que, com pouco mais de 16 anos, o acompanha todos os dias nestas andanças. Todos os dias menos nos da escola.
Juntaram-se ali ao pé de nós mas o que disseram eu já não pude perceber. Falaram sempre numa outra língua, numa língua que o pai trouxe do Senegal e que aqui os une aos dois.

*Crónica publicada no Público P3 a 26 de agosto de 2013.