(Pel)os velhinhos deste país*
No meio das revoltas da adolescência alguns de nós gritámos aos nossos pais
— ou a quem estivesse a ouvir — que não pedíramos para nascer. Pois bem,
acredito que estes não tenham pedido para morrer — pelo menos não antes de
perceberem que iriam viver assim. Há muitas histórias para contar sobre eles.
Há os que nunca descontaram e que vão
recebendo um subsidiozeco — aquele com que devem pagar a renda, as contas da
casa, a alimentação e, chegando, também a farmácia.
Há os outros, que o fizeram, mas aos quais o
que o Estado por eles guardou não chega para pagar as contas certas — quanto
mais as outras, incertas, que insistem em surgir. Talvez antes, antes dos
cortes, lhes fosse possível cobrir as despesas. Talvez antes, quando os filhos
ainda não tinham voltado para casa, quando os netos não comiam sempre à sua
mesa, quando os transportes, a comida e a farmácia eram mais baratos, talvez
nessa altura a reforma lhes chegasse. Talvez antes de a renda lhes ser
aumentada. Talvez agora se remedeiem, comendo um pouco menos, aproveitando mais
a luz natural, acumulando facturas na mesinha do telefone. Talvez assim vão
vivendo — ainda que eu não saiba se a isto se pode bem chamar viver. Talvez
estes sejam os que têm tanta vergonha que não deixam que a sua miséria seja
vista por olhos alheios.
Há os que pagam as contas, uma após a outra,
mas aos quais o corpo vai faltando já. São os vizinhos que vamos vendo
envelhecer — primeiro devagar, depois depressa — que vamos conhecendo mais
debilitados, menos cuidados, menos alimentados; de cujas casas vai saindo já um
cheiro a sujidade. São os vizinhos, ainda casais, que não conseguem já viver
sozinhos. Não conseguem mas fazem-no, que o que recebem não chega para pagar um
lar — e a Segurança Social pouco lhes consegue assegurar.
E depois há os outros. Cruzamo-nos com eles no
metro, quando de olhos poisados no chão e mão estendida, passam por nós. Pode
também ser num semáforo, quando devagarinho se aproximam do vidro — ainda que
chova — ou em ruas da zona nobre da cidade. Alguns de nós sentirão como que um
murro no estômago e ficarão imóveis, como que em choque, com os olhos a
adquirirem um brilho quase molhado. Outros olhá-los-ão com pena — e com uma
revolta maior do que a pena. Muitos pensarão nas estatísticas e
questionar-se-ão sobre o que estamos a fazer pelos velhinhos deste país — este
que é já o sexto mais envelhecido do mundo. Outros tantos ficarão a pensar que
envelhecer aqui é doloroso a duplicar. Ou a triplicar. Ou por aí fora.
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