domingo, 28 de julho de 2013

27 de julho de 2013

Faz já um ano.  Ainda te lembras da sensação? 
Entraste pelo aeroporto adentro bem cedo, com o sol ainda  a levantar-se timidamente sobre a cidade. Arrastavas a teu lado a mala preta,  grande, que combinava com o que levavas nos pés. Primeiro, ainda com a mãe ao lado,  avançavas    com um passo hesitante e o olhar, meio perdido, cheio de questões.  Perguntavas-te, em silêncio,  porque marcaras a viagem, porque te preparavas para te aventurares sozinha numa cidade que não a tua. Depois, despachada a bagagem e tendo-te a ti própria como única companhia, os teus passos ganharam uma nova confiança e um sorriso nasceu-te no rosto, com a saborosa sensação de te sentires capaz. Prestes a enfrentares o desafio - que propuseras a ti própria - sentias-te incrivelmente capaz.
Os voos nunca te meteram medo.  Na realidade,  as descolagens - mais do que as aterragens - sempre te deram gozo. É a sensação de poder,  de superação,  como que se existisse ali alguma analogia entre a força dos motores e a tua própria.  E aquele som a dar-te a certeza de que estavas, realmente,  a iniciar a primeira viagem da tua vida: a primeira ao teu ritmo, ao teu gosto, a teu belo prazer.
Se à primeira (breve) visita quase te apaixonaste - sabes, houve aquela troca de olhares que te fez pensar e se.... mas que não durou o suficiente para que toda tu cedesses -  a verdade é que à segunda um êxtase se apoderou de ti. Os teus olhos brilhavam, o teu rosto estava constantemente iluminado por um sorriso e chegavam mesmo a existir borboletas na barriga.
Apaixonaste-te mais por aquela cidade a cada um dos passos das intermináveis caminhadas. Quilómetros e quilómetros que fizeste questão de percorrer a pé,  fugindo quase sempre ao insuportável calor das estações de metro. Caminhando com destino mas sem horários,  sem obrigações.  Cumprindo unicamente a tua vontade.  Demorando-te na relva ou no cais, lendo páginas sem fim, acompanhando-te a ti própria e escutando-te com atenção. 
Foi lá que conheceste a sensação de te emocionares perante o belo. Ali, em frente aos vitrais, em frente aos azulejos coloridos, em frente às construções e detalhes cheios de significados,  os teus pés ficaram imóveis e os teus olhos encheram-se de lágrimas. 
Esse foi o culminar de um trajeto. Depois de desceres, de te afundares, de perderes o rumo reencontraste-o em ti. Começaste devagarinho a reconstruir-te. Peça sobre peça,  uma após a outra, foste substituindo lágrimas por sorrisos, foste valorizando mais os ganhos e menos as perdas. E ao apaixonares-te por aquela cidade descobriste-te também apaixonada por ti.
Talvez tenhas querido ficar ali,  naquele sítio em que te bastaste realmente a ti própria,  em que foste tão capaz. Eventualmente, nos dias em que as certezas te faltam,  consegues ainda mobilizar tudo o que aprendeste, tudo de que foste capaz. E apaixonares-te mais, uma e outra vez.   

sexta-feira, 26 de julho de 2013

26 de julho de 2013

Eu posso ter a perceção, ligeira, de que mudei. Ao início, quando a mudança estava em cada um dos meus passos, na forma como assentava os pés no chão, eu sabia - sabia tão bem - que algo em mim estava a mudar. Não algo, muito de mim. Sabia que o meu foco principal mudara - de fora para dentro - que as lentes cinzentas haviam sido substituídas por outras mais brilhantes. Sabia.
Mas à medida que os passos, ainda que mudados, conquistam um ritmo constante a mudança é cada vez menos notada. E às vezes - talvez mesmo muitas vezes - coloca-se os pés no chão com uma zanga maior a crescer em nós, uma zanga maior pelo que somos hoje ser quase, quase igual ao que fomos ontem. É como se já não chegasse, como se precisássemos sempre de mais. Mais. Mais. Como se todos os anos de imobilidade tivessem agora de ser compensados por mudanças constantes, mesmo que bruscas. 
E então vive-se com o que se tem mas querendo sempre mais. Sempre. Hoje muito, amanhã um bocadinho - mas mais, sempre mais. 
Às vezes, quando a luz entra por aqui adentro, coloco os pés no chão um atrás do outro cheia de sorrisos. Quero o que tenho mais do que em qualquer outro momento. Quero ficar no exato ponto onde estou. Mas vezes há em que o que tenho me parece tão insignificante que ao olhar o espelho quero gritar comigo própria e mandar-me descer do pedestal. Quero gritar ao reflexo e dizer-lhe que não fez nada mais do que a sua obrigação - adiada por tanto tempo.
Habituamo-nos depressa às mudanças e quase nos esquecemos de onde vimos. E mesmo que digamos que queremos esquecer o passado talvez não o devessemos mesmo fazer. Quero mais. Quero mais mas preciso de olhar para trás para saber que estou a por os pés no chão de forma certa. Preciso de me olhar ao espelho e de saber que cada marca visível ao olho representa uma mudança - das outras, das que não se veem.
E é por isso que ao ouvi-lo de fora os meus olhos se querem fechar e a covinha se forma mais abaixo, com os braços a resistirem ao impulso de me rodearem para me lembrarem de que consegui.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

24 de julho de 2013

Durante anos, quando em pleno verão percorria os corredores dos verdes do supermecado, olhava-os assim meio de lado. Enquanto cheirava as mangas pousadas logo ali, procurando perceber se as deveria levar comigo ou não, os meus olhos estavam pousados neles. O rosa, a pele rija e enrugada, o formato redondo de pequena dimensão.
Em algumas das vezes, quando as mangas a nada cheiravam - e por isso as mãos permaneciam vazias - as pontas dos meus dedos tocavam-lhes ao de leve. Tocava-lhes ao de leve e logo a inspiração era mais longa, mais forte, reagindo à textura há tanto conhecida. Talvez os tenha querido levar comigo. Levá-los comigo para mais tarde os abrir, para mais tarde rasgar a pele e saborear o interior, o branco sumarento. Mas de cada vez que os meus dedos lhes tocavam ao de leve, de cada vez que tocavam a sua pele e a minha inspiração se alongava, os meus olhos humedeciam-se transbordando memórias.
A cada inspiração uma imagem. Os pratos brancos de rebordo verde e limão pintado, a mesa de pinho, as almofadas forradas. Ou as barras de azulejos cheias de frutos. E as mãos de unhas roídas estendendo-os na minha direção, o
comprei-os para ti!
a dizer-me que deveria comê-los.
Ontem pu-los no cesto. Enchi-me de coragem e pu-los no cesto. E depois do jantar coloquei-os no 
guardanapo verde à minha frente e decidi-me a abri-los, um de cada vez. Quando as minhas unhas lhes rasgaram a pele e o sumo frio me molhou os dedos talvez tenha até fechado os olhos. Arrancada toda a pele levei-os à boca e fiquei mais pequenina. De repente, fiquei novamente pequenina - pequenina numa casa também ela pequena. E deixei que a pele me ficasse nos dedos, pressionando-a entre o indicador e o polegar, para que o tato se juntasse ao paladar neste reavivar de memórias.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

22 de julho de 2013

Que outro sítio que não este? Se não fosse a crise, que outro sítio que não este?
Aqui, onde o sol é refletido pelos vidros das janelas, pelas pedras outrora brancas dos monumentos, pela calçada que é tão nossa. Que outro sítio que não este?
Desce a avenida mais cara, mãos nos bolsos, sorriso posto. Caminha com a leveza dos dias longos de verão, com a certeza de que haverá luz por várias horas. Ainda leva a mão à mala para pegar nos phones mas logo desiste da ideia. Quer ver e ouvir a cidade, absorvê-la com todos os sentidos. Os olhos levantam-se do chão e veem mais à frente: mais à frente nos rostos de quem passa, nos prédios cheios de história, no cimo das colinas. E ainda que o sol esteja forte, ainda que encadeie um pouco e os olhos se semicerrem enquadrados por pequenas rugas, puxa os óculos de sol para o alto da cabeça e observa tudo à luz da cidade. Esta luz que é dela. sem igual em parte alguma.
Pode subir e descer vezes sem conta. Percorrer durante horas a calçada. Mas quando se senta em frente ao rio, com as pernas a baloiçar sobre ele e o sol a descair já ligeiramente à sua direita, apoia as mãos atrás, estica os braços, fecha os olhos e sustem a respiração. Há um sorriso instalado que gostaria de passar a palavras. Mas quando abre o caderno preto de linhas finas sobre as pernas e pega na lapiseira amarela as palavras que ali vai deixando parecem não chegar para transmitir a grandiosidade do que este sítio gera em si.
Que outro sítio que não este? Se não fosse a crise, que outro sítio que não este? Ruas sem fim, dias longos. Línguas que se misturam por entre sorrisos longos e audíveis, por entre passos mais ou menos demorados. Colina acima, colina abaixo. Filas para os gelados, venda de fruta em cada esquina, música de rua. As bicicletas, os segways e, lá mais em baixo, quase, quase ao pé do rio, as rodas dos skates a rolarem sobre a pedra a recordarem-lhe tempos já quase antigos. E mais logo, sob a pedra da calçada, levantar-se-ão copos e copos sem fim.
Senta-se em frente ao rio e ao ver um navio que parte cheio de pessoas controla o impulso de lhes acenar, questionando-se sobre o que levam deste sítio. E questiona-se sobre o que levaram os de cá, sobre o que levaram deste sítio os que aqui pertencem, os que, se não fosse a crise, não quereriam outro sítio que não este.Mas sob a luz da cidade - sob a luz desta cidade - com as línguas a misturarem-se em seu redor, com o sol a aquecer-lhe a pele devagarinho, com os pés a baloiçarem sobre o rio e as rodas dos skates a ecoarem lá mais ao fundo, juntando-se ao som do rio que vai e que vem, talvez a crise possa deixar de existir por algum tempo. E assim sendo, que outro sítio que não este?

sábado, 13 de julho de 2013

13 de julho de 2013

Vais perder a conta aos dias em que querias que estivesse mas não está e aos outros, em que não querias mas em que tudo continua aí - em ti, bem no centro de ti, para te lembrar que deixar ir é sempre mais difícil.
Vão haver dias em que te vais arrepender, em que vais querer morder o passado e desfazê-lo em bocadinhos pequenos - tão pequenos que o deixar ir se torne mais fácil - e outros em que gostarias de fazer do passado presente e futuro. Dias em que queres tanto que a tua vontade te parece valer por dois, dias em que a tua vontade te chega para não deixares ir. 
E depois vais zangar-te, vais zangar-te contigo e com os outros, vais zangar-te por deixares ficar, vais zangar-te por ainda estares, vais zangar-te pela falta de coragem, pela falta de força. Por acreditares. Vais zangar-te pelas tuas convicções - aquelas que te batem no peito - e por só tu as transportares, dia após dia. 
Vais fazer birra. Vais definir limites para logo a seguir os ultrapassares. Vais rir-te de ti própria e das decisões que quiseste tomar - para logo a seguir te voltares a encher de vontade de as levares a cabo, de as concretizares. Porque quando a tua vontade te parece valer por dois há muito que foge à tua perceção, há muito pouco de racional em ti. Os teus pés deixam de estar assentes na terra e queres que seja o que trazes no peito a comandar-te a vida.
Mas depois respiras fundo. Inspiras e expiras vezes sem conta. Revês o passado de coração pequenino e abanas a cabeça. Abanas a cabeça e ris-te do (quase) absurdo do que para aí vai. Ris-te a valer - mas ris-te ainda à espera que em breve te dêem razão.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

10 de julho de 2013

Sinto os minutos a passar. Um atrás do outro. Estou focada no avançar dos ponteiros do relógio, no passar dos dias. E vejo-os a esgotarem-se.
Encosto as minhas costas ao banco e observo o exterior pela janela entreaberta à medida que avançamos pela estrada. Não lhe presto atenção e os meus pés, ao fundo das pernas esticadas, estão cruzados um sobre o outro. Não olho a estrada, não pressiono os pés com força. As mãos estão poisadas com a palma virada para cima - uma na perna direita, outra do lado esquerdo do banco, no limite deste. À medida que avançamos procuro controlar a respiração, procuro controlá-la à medida que as palavras que mastigo me toldam os movimentos e me impedem de levantar o braço e de o esticar até ti. Controlo a respiração e controlo os pensamentos, o contar dos minutos, das horas. Quero desligar o que me afasta daqui, de ti. 
Ouço-te a cantar por cima da música do rádio e sorrio, sorrio com os olhos ainda lá fora - que em ti os olhos poderiam ficar molhados. Mantenho-me em silêncio mesmo quando a tua mão se poisa na minha perna e as entranhas se contorcem com vontade de te agarrarem.
Podemos pisar esta calçada toda a noite, todos os dias. Puxo a gola do casaco de encontro à pele, aperto-a bem. Aperto-a bem e aperto mais a tua mão na minha à medida que avançamos pela rua ainda limpa, ainda vazia de pessoas, ainda sem copos vazios. Talvez se eu a apertar muito, talvez se eu a apertar com força, o consiga fazer de forma a que os dias, as horas, os minutos não contem mais, de forma a que a contagem decrescente seja interrompida, de forma a que o tempo possa passar por nós sem causar danos.