Retrato
(factual) do Vendedor de Praia*
No dia seguinte ele voltou.
Vi-o quando nadava de regresso à
areia. Saí meio a correr, com medo de o deixar escapar. Aproximei-me e,
sorrindo, pedi que me acompanhasse. O curioso é que se lembrava do que eu
queria. Recordava-se ainda do modelo e da cor.
Aproveitando
a demora que o poisar de toda a carga sempre causa, ajoelhei-me junto a ele e
antes que me apercebesse a minha boca já se abrira e começara a lançar-lhe
questão atrás de questão. Bem, a verdade é que não foram precisas muitas.
Rapidamente me mostrou gostar de conversar, alongando-se nas respostas,
dizendo-me sempre mais do que eu perguntara. Pensando nisto uns dias depois,
quase parecia que tivera acesso a um qualquer guião que eu pudesse trazer
comigo mas que não tivera coragem de usar.
Quando a
minha boca se abriu para lhe perguntar se poderia fazer-lhe uma questão
sorriu-me com o rosto todo. Nos momentos de silêncio até à sua resposta
questionei-me se esta comunicação seria possível ou se a barreira linguística
se encontrava ali entre nós. Não, felizmente não estava. Num português que
claramente não aprendeu cedo, soube que viera do Senegal.
— Há 17
anos! — disse, cheio de orgulho.
Chegou a
Portugal em 1996 e não voltou a sair. Sempre fez isto de vender na praia,
sempre com licença.
— No
escudo era bom, vendia muito, com o euro é difícil… — desabafou, levando-me a
acenar levemente com a cabeça, revendo mentalmente todas as pessoas que me têm
dito o mesmo.
Esta praia é a sua praia. Sempre
a mesma, há 17 anos. Sorrio agora ao pensar em quantas vezes nos teremos cruzado
neste areal sem antes termos trocado uma única palavra.
Disse-me viver em Lisboa e eu
quase respirei de alívio. Falou-me do autocarro que apanha de manhã e à tarde e
do senhor do restaurante da praia, aquele, mais velhinho, que todos os dias lhe
guarda os pertences, permitindo-lhe voltar a casa apenas com o que trás no
corpo.
Tendo-lhe pago fiquei em
silêncio, dando-lhe tempo para então recuperar o fôlego e para o ver, como no
dia anterior, pegar na pequena toalha turca para enxugar o suor.
— Não está muito calor, é de
andar sempre — justificou — em África é mais quente.
De repente levantou o braço e
pôs-se a acenar, gritando numa língua que eu não compreendi. Acenava para o
filho que, com pouco mais de 16 anos, o acompanha todos os dias nestas
andanças. Todos os dias menos nos da escola.
Juntaram-se ali ao pé de nós mas
o que disseram eu já não pude perceber. Falaram sempre numa outra língua, numa
língua que o pai trouxe do Senegal e que aqui os une aos dois.
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