quarta-feira, 23 de agosto de 2023

22 de agosto de 2023

Hoje lembrei-me de ti. Ia a conduzir e, de repente, vi-te. Não sei se foi a música que estava a ouvir, se alguém que passou, sei que te vi. Vi-te e as lágrimas correram-me, depressa, pela cara com um nó na garganta daqueles que me tiram o ar. 

Penso pouco em ti. Na verdade, acho que foi por isso que chorei: porque pensamos pouco em ti. Apesar dos anos de vida em comum, apesar de tudo, sinto que pensamos pouco em ti - menos do que merecias.

Não me deixaste o resto do dia. Fui revendo memórias desses anos. 


Lembrei-me de quando levei o relatório de um exame teu ao médico que nos acompanhava e de na manhã seguinte pedir um cigarro (SG Filtro) ao professor Zé Tomás na aula de matemática e de acabarmos por ficar os dois a fumar e a chorar juntos na sala de professores do P1 (P2?) pelos cancros que nos continuavam a levar pessoas queridas.

Lembrei-me de quando fui contigo ao IPO para ouvir ao teu lado o diagnóstico e o caminho que te era traçado. Lembro-me, até, de o Dr. Ricardo dizer que te podíamos deixar fumar à vontade já que depois não seria possível - o que não é bem verdade, já que vi vários a fazê-lo mesmo depois da traqueotomia.

Lembrei-me de quando te zangaste comigo porque fiz questão de informar a tua filha, que não mantinha contacto contigo, de que estavas doente - e ainda hoje me tranquiliza saber que te dei essa relação nos anos que tiveste depois do primeiro diagnóstico.


Lembrei-me de estar deitada na minha cama e de te ouvir falar no hall e de sair disparada, feliz e orgulhosa, por ter conseguido perceber tudo. Foste um paciente exemplar na terapia da fala, persistente na recuperação da tua voz - e o que o JD se ria ao ouvir-te falar. 


Lembrei-me, claro, de quando dois ou três anos depois, por altura do natal, começaste a ter dificuldade em engolir. Lembrei-me do medo - sempre o medo depois do meu pai - que senti. Lembrei-me de um almoço em casa do meu tio em que tiveste de sair da mesa porque a comida não descia. Lembrei-me de uma ida ao cinema - mas não do filme -, de a mãe se ter enganado e ter colocado gasolina em vez de gasóleo e de termos seguido no meu carro para o IPO porque de repente já havia sangue.

Lembro-me das urgências do IPO (que não se chamam assim), de um médico já entradote que te foi ver com um casaco de inverno azul escuro - que faz parte da farda do IPO - e de na manhã seguinte já lá estar novamente, ainda que não sendo filha, ainda que não podendo acompanhar-te. Lembro-me dos dias nos cuidados intermédios, de ler um ou dois livros agachada no corredor e de uma enfermeira se zangar comigo por não fazer como os outros e não me sentar na sala de espera. Lembro-me de nos dizerem que estava de volta e que vinha em força. De estarmos ao pés da cama, as duas lado a lado e a agirmos como palhaças enquanto víamos a tensão arterial a descer, a descer. De lhe telefonar a dizer que fosse ver-te porque depois poderia já não ser possível. Lembro-me da transferência para uma enfermaria no edifício nas traseiras do IPO, da revolta pelas poucas condições, da tua tosse.

Lembro-me de estar a trabalhar, no dia a seguir, e de a mãe me telefonar. Tinham-te colocado em coma, estavas nos Lusíadas com uma pneumonia. Lembro-me de que foi lá que descobri que faço alergia a luvas das que têm pó dentro. Vi máquinas a fazerem todo o trabalho por ti. E depois acabou. Foste-te embora.


O cancro que te apanhou é um clássico em alcoólicos e fumadores. Para o boletim dos Alcóolicos Anónimos escrevi, em nome de toda a família, algo como “obrigada por nos terem dado o Zé nestes dois anos como nunca antes”. 


Foi um processo tão rápido - uma semana desde o cinema? - mas que nos deixou em paz.

Lembro-me, sei, que te agarraste à vida e a mudaste. 

Passaste por nós. É o que sinto. Passaste por nós. Passaste por nós para nos mostrares que é possível dar-se a volta à vida. E deixaste-nos em paz.

Sem comentários:

Enviar um comentário