terça-feira, 28 de janeiro de 2014

27 de janeiro de 2014

banda(s) sonora(s) da vida.*
Há um friozinho sorrateiro a entrar devagarinho. Enquanto a música te enche o quarto – num tom suave – e te movimentas no vai e vem de quem tem uma casa de que cuidar, sentes que te está a crescer no peito e a ocupar um espaço que não lhe pertence mais. Um friozinho na barriga, um rubor na face, uns olhos de repente quase humedecidos.
A banda sonora de momentos com sabor a doce. A banda sonora de quando, deitados lado a lado, os corpos nus entrelaçados sob o edredão, ela se deixou ficar a ler mais um livro enquanto ele usava os seus dedos dos pés para marcar o ritmo nas pernas dela. Talvez ela não se recorde mais do livro que lia mas a banda sonora – memória auditiva – continua associada à outra, fotográfica, em si sempre tão persistente.
Associado aos olhos quase humedecidos, um sorriso que ela guardará sempre para as histórias quase felizes, para as histórias-felizes-por-pouco-tempo que ela julgara serem para sempre.
E a música continua, faixa após faixa. A dado momento ela terá pousado o que transportava, abandonado os afazeres, ter-se-á deitado sobre a cama e olhado o teto, primeiro, para logo fechar os olhos e cerrar com força os lábios perante as memórias que lhe apertam ainda o peito. De olhos fechados recordará os planos, silenciosos, que fizera, a felicidade estampada no rosto de quem julga ter encontrado o amor para a vida, a ansiedade pelo olhar atento e o aconchego há tanto conhecido. Lembrar-se-á de se deixar ficar estendida na cama, observando a noite a cair lá fora, querendo (com muita força) que esta seja manchada de branco. Acredito que se lembre até da música a ser abafada pelo som da água a correr, de observar as gotas e o vapor a acumularem-se de encontro às portas de vidro, escondendo-o para além delas.
Depois, quando as faixas se esgotarem, pousará ao seu lado o telemóvel que antes agarrara com as duas mãos e deixar-se-á ficar a recordar as bandas sonoras da vida, as que mantém consigo, percebendo que as deveria colocar nas gavetas a que pertencem e mantê-las por lá, fechadas a 7 chaves.

*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 27 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

6 de janeiro de 2014

Erros*
Com o passar do tempo percebi que o meu maior erro foi ter-te deixado escorregar-me das mãos. Quando me pediste que te agarrasse, e eu disse já o fazer, menti. Não menti. Agarrava-te. Aí dentro. Segundo tu me dizias, disseste, e sentias. Mas não te agarrava por vontade. As coisas aconteceram. Tu apareceste, enfiada num conjunto infinito de palavras, que veio, direitinho, cá dentro. E cativaste-me. A menina doce. E confusa. Desequilibrada. E então escorregaste-me. Escorregaste para mim. Não devagarinho, depressa. Para esconderes o teu rosto contra mim, inspirares-me, abraçares-me. E para que te segurasse. E quando me dizias Não fujas e eu te perguntava Ficas comigo?, queria agarrar-te. Mas não queria que me agarrasses. A tua presença doce, e silenciosa, tinha o poder de me circunscrever àquele espaço, ao teu espaço. A ti. E se eu gostava…Mas assustava-me. As lembranças de experiências antigas que em dois dias me caíram em cima. E tu que me quiseste perguntar Porquê? mas nunca o fizeste. Eu não deixei. E da mesma forma que me escorregaste, que escorregaste para mim, não devagarinho, depressa, eu escorreguei para longe de ti. E não mais me lembrei. Deixei-te ir. E vi-te especada à minha espera. À espera do telefonema, da mensagem, do e-mail. E deixei-me ficar a ver-te. Como te vi, sentada de frente para mim, ou ao meu lado, com as nossas pernas entrelaçadas, e o teu sorriso doce, o teu nariz engraçado, os teus olhos brilhantes e os teus humm derretidos no meu pescoço. E as saudades que no princípio de tudo senti, foram-se. Esmaguei-as. Por medos. Por fantasmas do passado.
Hoje, sentei-me num banco de jardim, num banco do jardim a que me deverias ter levado um dia, não fosse eu ter-te escorregado. E fiquei a observar uma criança, de cabelos castanhos claros, com pequenas molas naturais nas pontas, que se elevavam dos ombros para cima.
- Nári, anda cá!
Nári…Nári…Nári…Nári! Nári…Nári e David. Os dois filhos que tu me disseste desejares. Nári. E então ela correu em direcção a ti. E só aí me apercebi da tua presença. Descontraída. Sentada com as pernas à chinês, como sempre gostaste. O cabelo preso à frente com um gancho. Um caderno sobre as pernas. Uma caneta que se passeava pelos teus dedos. A Nári levantou os olhos, e olhou-me de frente. Tu viraste-te. E estagnaste. Paralisaste. Nem um piscar de olhos. Depois levantaste-te. Adivinhei a tua respiração. E caminhaste, descalça, até a mim. O teu olhar pousado no chão. A relva verde. Os blocos de cimento. A Nári correu atrás de ti, e abraçou-te as pernas. E então olhaste-me, de frente, enquanto eu ganhava coragem para me levantar. E depois disseste, fria
- Olá. Há quanto tempo…Esta é a Nári, a minha filha.
E o teu olhar frio pousado em mim. Espadas. Vidros. Pedras. Castigos antigos que não me pudeste inflingir.
Hoje percebi que o meu maior erro foi ter-te deixado escorregar-me das mãos.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 6 de janeiro de 2014