terça-feira, 15 de dezembro de 2015

15 de dezembro de 2015

Eu.
Eu não lido bem com instabilidade. Preciso de tudo arrumado, as pessoas todas no seu lugar, no meu lugar. 
Eu não lido bem contigo. Não lido bem com a tua instabilidade, com o nunca saber se vais (querer) estar ou não. Não lido bem com os teus silêncios, com os teus olhos silenciosamente pousados em mim, com os teus dedos que não se mexem, que não (me) escrevem. 
Eu não lido bem com perdas - não com A perda, com perdas constantes, com este não saber se estás ou não, se amanhã também estarás aqui.
Eu não lido bem com a tua ausência, com o espaço em branco que deixas. Eu não lido bem com espaços em branco antes ocupados, eu gosto das pessoas todas no seu lugar, arrumadas, quietas - perto de mim.
Eu.
Eu não gosto quando te colocas à parte (porqu)e nunca sei se TE colocas a ti, se ME colocas a mim. Eu não lido bem com a corda bamba em que me fazes caminhar, com estes constantes mini-ataques cardíacos que nunca o chegam a ser.
Eu não lido bem com a tua tristeza, nem com a tua fraqueza. Não lido bem com os olhos tristes. Não lido bem com a minha incapacidade de lidar com eles, nem com a vontade de te passar as mãos pelo cabelo e te dar colo.
Eu.
Eu não lido bem com as dúvidas, com o talvez. Eu preciso do sim ou sopas, do é ou não é, do estás ou não estás - mesmo que não estejas. Eu não lido bem com o não saber se vais estar do outro lado quando o telefone tocar, com o não saber com o que posso contar.
Eu não lido bem com as palavras que me querem sair pela boca, pelos dedos. Eu não lido bem com as piadas tontas que faço enquanto tento calar as verdades que tenho para te dizer nem com respostas tortas que dou e que tanto dizem.
E mesmo quando caminhamos lado a lado pela rua escura, quando somos só nós, eu não lido bem com todas estas questões. 
Eu.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

10 de dezembro de 2015

Lia-lhes o livro em voz alta, sentada na mesa de apoio que mantenho junto à minha secretária, com os pés em cima da cadeira. Temos vindo a lê-los ao longo deste primeiro período. Tenho pedido - muitas vezes, como hoje uma aluna me apontou - que me digam o que o livro, o que os parágrafos e as passagens os fazem sentir, o que ou de quem os lembra. Explico que se formos capazes de identificar as nossas emoções mais facilmente conseguiremos lidar com elas, domá-las quando necessário. 
Eles não sabem, não precisam de saber, que o temos descoberto juntos, que o leio agora pela primeira vez, surpreendendo-me como eles se surpreendem, analisando como lhes peço que façam, que o fazemos muitas vezes em conjunto. Eles não sabem que escolhi fazer assim, que quis que esta história fosse nossa antes de ser minha.
Hoje lia-lhes o penúltimo parágrafo. Lia-lhes as páginas em que a personagem principal se prepara para partir, para regressar ao sítio de onde veio.
Quando nos deixamos prender a alguém, arriscamo-nos a chorar de vez em quando…
E assim, enquanto leio em voz alta, a minha voz treme ligeiramente, enquanto os meus olhos ficam enublados e as lentes dançam um pouco. Faço pausas mais demoradas nas vírgulas, nos pontos finais - preciso de respirar, de ganhar fôlego, de me encher de ar para conseguir ler sem demoras, para que as palavras me saiam seguras uma depois da outra. Não quero que percebam que me emociono assim.
Debato-me sempre, indecisa. Não sei se hei de ser pessoa, se super mulher. Não sei se quero que saibam de que fibra sou feita, se é melhor conservarem esta imagem de professora durona.
Emocionei-me hoje com estas palavras. Emocionei-me também ao ouvi-los, quando lhes pedi exemplos práticos desta situação - por serem duros, por muitos já terem ocorrido desde que existimos. Emocionei-me ao identificar-me com os exemplos deles.
Quando nos deixamos prender a alguém, arriscamo-nos a chorar de vez em quando…
Eles não sabem, poucos o sabem, mas faço-o com frequência.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

2 de dezembro de 2015

Preciso disto. Preciso destas pausas só para mim. De me sentar a esta mesa e de me deixar ficar aqui, de mocca branco na mão, com extra dose de chocolate branco.
Sorrio quando os funcionários me cumprimentam usando o meu nome próprio e completam o meu pedido quando este ainda vai a meio. Sou uma pessoa de hábitos, de rotinas. Gosto das que são só minhas.
Gosto dos meus momentos, de quando eu sou apenas eu e não o eu professora, o eu mulher, o eu amiga, o eu das outras pessoas. Ser apenas eu sabe-me bem e preciso tanto disto. Sou melhor eu quando consigo sê-lo em silêncio, em sossego.
Sento-me aqui e os dedos começam de imediato a percorrer o teclado, como se precisassem deste momento. E precisam. Precisam tanto disto quanto eu. Mastigo ideias dias a fio à espera do tempo para me sentar aqui e as deixar sair. Preciso disto.
Nesta(s) mesa(s) escrevi os textos de que mais gosto. Escrevi sobre amores, sobre dores. Escrevi sobre perdas. Escrevi sobre alegrias e fiz balanços de uma vida. Hoje podia escrever sobre o medo dos dias em que estas pausas me fujam.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

24 de novembro de 2015

Eu não me vou encaixar. Eu nunca me encaixo. Sou sempre o bichinho - não o social, o do mato. Costumo dizer que tenho poucos amigos, que tenho poucos mas (muito) bons. E é verdade.
Sempre lidei bem com isso. Sempre ouvi afirmações sobre o meu feitio, caracterizado sempre como sendo mau. Sempre ouvi queixas sobre a forma um pouco impulsiva como reajo a imprevistos e a situações que fogem ao meu controlo. E é verdade. Gosto de saber com o que conto, quando, onde, com quem. Não gosto que me troquem as voltas, que me mudem os planos, que me deixem sem resposta. Penso muito sobre tudo. Sobre as minhas reações, sobre as dos outros, sobre o que disseram ou deixaram por dizer e o que quiseram dizer com algo que efetivamente disseram. Não sou calculista - de todo. Gosto apenas de planear, de me organizar. Talvez precise disso para me sentir mais segura: saber o que vai acontecer agora, o que vai acontecer depois.
Confirmo o meu feitio delicado. Costumo chamar a atenção para ele logo de início quando conheço alguém.
- tenho um feitio terrível
ou
- não sou uma pessoa fácil
ou
- ainda não viste o meu lado mauzinho
Não quero surpreender ninguém, desapontar. Prefiro que saibam desde o início com o que poderão contar.
Sempre lidei bem com o facto de me rodear por poucas pessoas. Aliás, sempre estive habituada a isso. Gostava de brincar sozinha com as minhas barbies, de ler nos recreios, de passear sozinha pela baixa, acabar a tarde junto ao rio com um copo do Starbucks numa mão e um livro na outra. Gosto do silêncio, da calma, da bolha em que me escondo às vezes - quando isso é uma escolha minha.
Mas, às vezes, apercebo-me de que sobro. Sobro muitas vezes. Eu não me encaixo nos grupos. Faltam-me os temas em comum, os interesses coincidentes. Não tenho nada a acrescentar e, frequentemente, não encontro interesse no que poderia dizer e, por isso, não digo. Outras vezes abro a boca, falo, mas os olhares dos outros nem pousam em mim, como se simplesmente não me ouvissem, como se eu tivesse falado apenas para dentro - e não falei.
Às vezes sinto que não pertenço, que estou a mais. Tremo por dentro, fecho-me por fora. Até que me sinto protegida e deixo que as lágrimas me escorreguem pelo rosto enquanto, por entre soluços, tento explicar o que talvez não tenha explicação.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

3 de novembro de 2015

Às vezes fico só ali a observá-los. Apoio-me no parapeito da janela (sobre o qual, no outro dia, um deles dizia que se devia chamar parapernas, de tão baixo que é) ou sento-me numa cadeira das pequenas, camuflando-me no meio deles. Gosto que se esqueçam de mim por alguns minutos, de os ver trabalhar como se eu não estivesse na sala, de ver como se organizam e se relacionam.
Fico a observá-los. Faço-o já há mais de três anos e faço-o talvez agora com maior frequência, sendo este o último ano juntos dentro destas quatro paredes. Observo-os com admiração - com sentido duplo, que se por um lado me deixam admirada, surpreendida, por outro o faço com todo o respeito, com reverência até.
Vi-os aprender a ler e já nem sei bem como o fizemos mas fizemo-lo - e depressa. Leio os seus textos e rio-me, emociono-me, zango-me às vezes - e fico, quase sempre, impressionada. 
Às vezes, quando planifico o nosso trabalho semanal, dou por mim indecisa, à procura do melhor caminho a seguir. Hoje, por exemplo, fizemos uma das nossas rotinas de trabalho de forma diferente da habitual. No final, quando me preparava para lhes perguntar que tal lhes tinha parecido, houve braços no ar que se anteciparam, houve opiniões bastante favoráveis e houve, acima de tudo, a capacidade de reflexão a que me têm habituado. Em momentos como este, em que expõe as suas ideias e fundamentam a sua opinião indo ao encontro de toda as teorias que desconhecem, tenho vontade de os gravar, de gravar para sempre aquilo de que são capazes. Nestas alturas percebo que alguma coisa tenho feito bem.
Vejo-os a mexerem com números cada vez maiores, com unidades de medida, com contas complexas e estratégias que não raras vezes exigem um segundo olhar. Vejo-os a batalharem, a trabalharem autonomamente os conteúdos em que se sentem mais inseguros até que estejam fortes o suficiente. Vejo-os a ajudarem-se uns aos outros. E orgulho-me.
Gosto que saibam que estou disponível para aprender com eles. Realmente. Gosto de os ouvir quando a minha opinião ainda não está bem formada, de ouvir as suas propostas de solução, de organização. Gosto que em pouco mais de um minuto consigam organizar pares de trabalho, escolher a proposta em que querem trabalhar e com que aplicação. Gosto que sejam elogiados por terceiros pela forma como trabalham - porque às vezes o meu olhar pode estar já viciado, tornando-se demasiado tolerante.
Mas sou exigente. Sou exigente com a atitude perante os outros, com a atitude face ao trabalho. Gosto que se empenhem, que se esforcem, que procurem superar-se diariamente. Sou muito exigente comigo própria neste papel. Os sucessos são deles, as derrotas são minhas. Sempre. Tenho imenso orgulho em tudo o que já conquistaram mas não esqueço que nem todos chegámos até aqui.
Às vezes, não raras vezes, fico só ali a observá-los. Quando descrevo o que se vive ali a quem está de fora sei que não transmito nem metade. É preciso viver isto.

sábado, 10 de outubro de 2015

10 de outubro de 2015

Lembro-me de ti com frequência. A semana passada abri o frigorífico para tirar alface e lembrei-me de ti. Sorri, como faço quase sempre nas vezes em que te recordo. Lembro-me de ti em situações como esta. E não sei porquê. Nunca comemos alface juntos. Cozemos massa e fizemos um sumo.
Lembro-me de ti quando falo da Gulbenkian ou quando a visito, quando me sento na relva e recordo as muitas horas ali passadas. Lembro-me dos queques gigantes da Avenida de Berna. Lembro-me do teu jeito muito próprio de andar, do facto de (quase) nunca chegares a horas e da forma como isso não me incomodava nem um bocadinho. Lembro-me de ti quando o oiço falar com os seus
- hum 
Lembro-me do dia da minha peça de teatro, da forma como depois me arrastaste para o teu colo e me disseste que tinhas muito orgulho em mim. Lembro-me das borboletas na barriga.
Lembro-me de ti quando penso nas noites de Bairro Alto, quando nos vejo rua fora de mão dada. Lembro-me de ti e sorrio. Lembro-me de ti de roupão e de fumarmos assim à porta do prédio, de descansar umas horas e de sairmos de fininho para não acordarmos a tua irmã, apressando-me para apanhar o primeiro autocarro da manhã. Era contra as regras trazer alguém para dormir. 
Lembro-me de que me apoiaste. Muito. Lembro-me de falar contigo sobre ela e sobre todas as coisas disparatadas que fazia e de a expulsares das nossas conversas por quereres expulsá-la da minha vida. Lembro-me de que um dia, um dia já bem perto do fim, pouco antes de o perder, confessei às escuras ter muito medo. Lembro-me de tapar a cabeça com o edredão, como se assim não o ouvisses, como se assim não fosse verdade, como se assim eu não tivesse por que ter medo. Como se eu não estivesse a ser fraca. Lembro-me de ti virado para a parede, de observar as fotografias espalhadas por toda a parte e não me encontrar em nenhuma. Lembro-me - ou secalhar não me lembro, secalhar penso agora - que eu nunca estive em parte alguma.
Lembro-me de ti e sorrio. Lembro-me de que gostava muito de ti, meu amigo.
Lembro-me de que um dia entraste no hospital ao meu lado, que caminhaste comigo de mão dada pelo corredor que às vezes ainda percorro - em que me lembro dele e me lembro de ti.
E lembro-me de que no dia, naquele dia, te liguei noite dentro e o teu telemóvel estava desligado. Que o perdeste no festival. Lembro-me de que te queria dizer e não sabia como, de falar com a tua mãe ao telefone e de não lhe querer dizer. E lembro-me de que depois, quando estivemos juntos, falei de tudo menos daquilo e que foi preciso tapar-me com um casaco para conseguir falar. Nesse dia, no metro, quando eu estava quase a sair, em pé, encostados à porta, chegaste-te mais perto e disseste
- gosto muito de ti.
Lembro-me dos nossos teatros de rua. Dos textos no blog que escrevia para ti, sobre ti, a pensar em ti.
Depois eu entrei para a faculdade. Comecei a namorar com ele e praticamente deixei de te ver. E assim, sem eu perceber bem como, nem porquê, saíste da minha vida. Anualmente, no dia do teu aniversário, envio-te uma mensagem que diz "Parabéns, Manel. Beijinhos. Maria". 
Lembro-me de ti.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

5 de outubro de 2015

Durante uns dias foi tema de conversa ao almoço.
-  Vamos correr.
- Mas costumas correr?
Eu não corro. Eu não faço exercício. Eu era miúda que fingia ter deixado o equipamento em casa para não ter de fazer a aula de Educação Física - uma e outra vez. Eu tinha dores de barriga todas as semanas e não apenas uma vez por mês. Tive sempre o 3 a manchar-me a pauta. Houve momentos, raros, em que fui assídua no ginásio. Objetivo: ganhar peso, desenvolver a massa muscular. Respirar. Estar comigo. Há dois anos, ainda inscrita no ginásio, saía do trabalho e ía correr para a rua. Andar. Correr. Andar. Fui melhorando. E desisti. Há pouco mais de um mês inscrevi-me no ginásio. Consegui a proeza de ir lá apenas uma vez. 
- E quanto é que vão correr?
Houve opiniões divergentes. Eu coloquei como meta os 3 km. Nem isso achava que ia fazer. 
- Vamos até à ponte.
Eu disse-lhe que não sabia o que estava a dizer, que ainda agora tínhamos começado e que não podia ter noção da minha (in)capacidade. Eu corri até à ponte. Às vezes andei. Mas corri. Fui até lá. Fomos e voltámos. Queixei-me
- Tenho demasiado ar cá dentro
e
- Já nem estou a ver bem 
ou
- Estou a morrer de sede
e
- Tenho dor de burro nas costas 
(e tenho mesmo)
Eu fui e voltei. E não acreditava que seria capaz. Os meus pés pisaram a calçada, pisaram o alcatrão. Um pé, depois o outro, vezes e vezes sem conta, às vezes já sem quase se descolarem do chão. Mas fomos e voltámos. E voltei maior. 
Eu não corro. Mas da primeira vez fiz 5,2 km. E da segunda também, já com menos paragens na ida. Se me soube bem? Superei-me em cada passada. Se doeu? Doeu, doeu bastante até, mas soube tão bem.
Hoje voltámos a ir. O primeiro dos dois dias da semana. Mal começámos a chuva começou a cair. Primeiro de fininho. Depois pingas grossas, afiadas, batidas pelo vento. Os pés encharcados, as calças molhadas coladas ao corpo, o corta vento a deixar passar toda a água. Os olhos a lutarem contra as gotas presas nas pestanas, com as lentes a ficarem baças. Abrigámo-nos do vento de encontro a uma parede. Rendemo-nos, já com os ouvidos cheios de água. Mas ri-me, ri-me muito. Eu, Joana Loureiro, a correr debaixo de um temporal. Nós fizemos a nossa parte.
Troquei de ténis e de tshirt. Vim para casa enregelada, com as calças molhadas. Pelo caminho consultei a aplicação que nos acompanha. Hoje corri o quilómetro mais rápido de sempre. Debaixo de um dilúvio. E soube tão bem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

24 de setembro de 2015

Quero dizer-lhe que chegou a altura. Ali, sentada naquele sofá, com uma perna dobrada por baixo da outra enquanto agarro uma das almofadas. Eu digo
- então...
mas o então veio molhado, veio escorregadio. Interrompido. O então veio com lágrimas e com riso. O 
- então 
sai abafado pelas lágrimas e pelos soluços que eu não sei se são choro, se gargalhada.
Pressiono um lábio contra o outro, tento perceber o que estou a sentir. Foi isso, também, que aprendi a fazer aqui. Ela olha-me, sentada na cadeira em frente a mim e sei que sabe o que quero dizer. 
Fomos falando sobre isto desde há já algum tempo - mas este tem sido um ano cheio de emoções para gerir e eu fui adiando, insegura.
Às vezes, quando tento pensar há já quanto tempo este momento faz parte da minha vida, tenho dificuldade. Estou confortável aqui, tenho estado. Não olho para o relógio ou para o calendário. Mas sei. São já três anos. Três anos nem sempre fáceis, três anos a crescer. Houve dias em que quis vir mais vezes, outros houve em que me zanguei por vir - mas vim, sempre.
Durante estes três anos chorei lágrimas que nem sabia ter para chorar. Chorei a morte, chorei o fim, chorei começos que nem chegaram a ser. Chorei as zangas. Chorei até as alegrias. Chorei de orgulho.
Comecei sempre com um
- está tudo bem...
que já nos faz rir e fui, invariavelmente, saltando de assunto em assunto, muitas vezes tentando fugir à reflexão. Só uns ouvidos atentos como estes me conseguiriam acompanhar.
Tive trabalhos de casa. Tive de estar atenta a mim própria. Aprendi a ouvir-me, a respeitar-me mais. Aprendi que sozinha também pode ser bom - e foi, enquanto foi. Aprendi que compaixão não é pena -  e que não faz mal que a tenhamos por nós próprios. Aprendi que é saudável zangarmo-nos quando assim tem de ser, que não é preciso fugir. Aprendi a chorar de alegria.
A pouco e pouco houve mudanças. Primeiro o cinzento cedeu e houve um rosa, cada vez mais forte, a crescer em meu redor. Aprendi a ver a cores e não apenas a cinza. Depois fui desligando os alertas, as sirenes. Aprendi a respirar. E a aceitar. Aprendi a confiar, a acreditar que o que acontece é sempre pelo melhor - mesmo quando, à partida, não o conseguimos ver.
O
- então...
sai-me por entre lágrimas. Lágrimas felizes. Lágrimas de vitória, lágrimas de quem chegou até aqui - e que chegou bem melhor do que saiu.
Digo
- estou crescida
e ela sorri. Sabemos que é verdade.

domingo, 13 de setembro de 2015

13 de setembro de 2015

Ele começou o dia a responder à pirraça da avó
- estou na esplanada em frente à praia de Sesimbra - disse ela
- e eu logo à tarde vou ao cinema com a tia Joana
(toma, toma)
Fomos buscá-lo. Vinha entusiasmado, falador como só ele sabe ser. Íamos ver a Ovelha Choné, um (quase) clássico.
Não havia ninguém na bilheteira e ainda tínhamos algum tempo.
- são três bilhetes para a Ovelha Choné, umas pipocas...
- doces - disse ele
- e uma água natural.
Pouso o cartão da Zon no balcão
- tem uma identificação? - pergunta o funcionário 
e enquanto vasculho a carteira à procura do meu cartão do cidadão ouço dizer
- mas é para esta sessão?
- sim... - respondemos a medo
- está esgotada.
Engulo em seco. Olho para ele, mais abaixo, vejo-o começar a contorcer o rosto, a apertar os lábios, a fazer beicinho
- só tenho dois lugares
Olhamo-nos em silêncio e ele, impecável, diz
- vão vocês, fico por aqui a dar uma volta
uma volta de uma hora e meia, penso.
- pode ser então - digo
- mas os dois lugares são separados - acrescenta o senhor.
Olho para ele e já não lhe vejo a cara. Enrolou o casaco, tapou a cara com ele e chora desalmadamente. Ele chora. Eu quero atirar-me para o chão a fazer o mesmo.
Levamo-lo para um canto, dou-lhe colinho, limpo-lhe as lágrimas enquanto penso que devia ter antecipado isto, enquanto me culpo por cada uma das suas lágrimas. Levo-o ao colo durante um bocado, enquanto procuro acalmá-lo.
- vamos durante a semana, a seguir ao colégio - digo eu
- não. não. não.
E eu quero fazer beicinho.
A mãe envia o horário de outro cinema.
- vamos lá?
- sim - diz, ainda sem sorrir.
E fomos. Desta vez chegámos bastante cedo. Desta vez a sala tinha ainda muitos lugares. 
Ainda fomos comprar os ténis que a mãe pediu. Assisti à melhor estratégia de sempre para experimentar sapatos novos: correr com eles. Calçou um ténis, pôs-se em posição de partida e atravessou o corredor da loja a correr. No regresso levantou o polegar. Prevenida, ainda tentei o número acima, na expectativa de que durassem mais. Utilizou a mesma estratégia. Voltou de polegar para baixo.
Quando o deixámos em casa ia feliz. Depois de eu sair abriu a porta e disse
- obrigado, tia.
Obrigada eu. Sempre.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

9 de setembro de 2015

Estou sentada a esta mesa mais uma vez, como em muitos finais de tarde pós trabalho. Sento-me aqui, instalo-me. Ocupo a mesa com o mocca branco com extra chocolate branco no interior - que coloca os meus níveis de açúcar nos píncaros - o iPhone, o iPad, um livro. Às vezes também com o caderno vermelho e o lápis que trago da minha sala de aula.
Ontem, a propósito d'O Principezinho que comecei a ler com os meus alunos, um dizia que tem de explicar sempre aos adultos porque mexe no iPad e vê TV ao mesmo tempo, porque joga PS3 (ou 4) e tem o iPad num qualquer jogo. E eu percebi que sou igual. Mas não o explico a ninguém.
Estou aqui sentada. Deixo-me estar. Ouço a música que me faz sorrir. Consulto o shazam. Confirmo suspeitas.
E decido ler-me. Ler-me lá longe, no Brasil, quando escrevia semanalmente para o Blog Priscila Nicolielo. Vou lendo texto após texto. E mordo o lábio, mantenho os olhos muito abertos, procuro não pestanejar. Porque às vezes, quando me leio, sou surpreendida pelo que sou enquanto escrevo, sou surpreendida pela forma como as palavras se ligam umas às outras e me fazem voltar atrás tanto tempo depois, como consigo ainda visualizar o exato local onde escrevi - muitos deles aqui, neste mesmo espaço - escutar as bandas sonoras, perceber a cadência com que escrevi, li e reli. Mantenho os olhos muito abertos procurando segurar as lágrimas. Porque me emociono, porque apesar deste ar de durona sou um coração mole, porque me emociono com notícias felizes e com notícias tristes, porque me deixo abalar, porque gosto um bocadinho de sentir que tremo. Porque às vezes, quando me leio no passado, não me reconheço. Não me reconheço mas encho-me de orgulho e penso
eu escrevi isto?
um
eu escrevi isto?
que deve soar como um
uau
Não me reconheço mas identifico-me com quem escreve. Imagino-me a chorar as mesmas lágrimas, a sofrer as mesmas dores, a descobrir a mesma vida feliz, a aprender a sorrir. Não me reconheço mas admiro a miúda que escreveu todas as palavras. E, sim, em alguns dias eu consigo ser essa pessoa. Espetacular.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

2 setembro de 2015

Há dez anos atrás, mais ou menos a esta hora - seria mais cedo, mais tarde? - disse-te as últimas palavras. Disse-te 
- gosto muito de ti.
E ainda bem que o fiz. Nos dias menos felizes em que me lembro de tudo isto tenho o consolo de te ter dito o importante.
Disse-te palavras que há muito não te dizia. Estive naquela idade em que evitava os abraços, as palavras meigas. E depois tu emagreceste (muito) e fugiste-nos.
Daqui a uma semana fará dez anos que entrei para a faculdade, para aquele curso que, quiseste crer, me verias terminar. Afinal, no dia em que saiu o resultado da candidatura, os teus olhos já não brilharam de orgulho em mim.
Em dez anos tanta coisa aconteceu. Estamos tão crescidas, em algumas coisas tão mudadas. Estamos umas mulherzinhas.
Faz amanhã dez anos que almoçámos - ou tentámos - coelho à caçador e fomos no peugeut vermelho até lá, sem saber que enquanto isso nos fugias. Faz amanhã dez anos que percorremos abraçadas, abraçados, o corredor do SO e que à pergunta de um enfermeiro
- então, piorou?
respondi 
- morreu.
Hoje faz dez anos sobre o último abraço, as últimas palavras. Amanhã faz dez anos que nos deixaste. Daqui a dois dias faz dez anos que te deixámos no único sítio em que, sabíamos, querias ficar para sempre.
Para sempre. 
Amanhã vou fingir que não passaram dez anos. Amanhã vou abrir a porta da sala e receber os mimos dos meus alunos. Porque amanhã, como hoje e sempre, devo viver da forma como tu gostarias de me ver viver. A sorrir.
Gosto muito de ti. Para sempre.

sábado, 25 de julho de 2015

25 de julho 2015

Eu podia falar sobre tudo. Sobre os prazos, a correria. As flores. As flores. As flores. Sobre o nervosinho miudinho bom - e sobre o outro, que por vezes ameaçou fazer de mim alguém diferente.
Podia falar sobre a facilidade com que escolhemos o espaço - à primeira - e logo depois a igreja - a mais próxima. Podia falar sobre a escolha dos convites, contar toda a história dos bilhetes na nossa relação, explicar que o primeiro me foi entregue no primeiro dia das nossas vidas enquanto casal e que depois desse muitos vieram. Podia explicar que ao estender os bilhetes aos que nos são próximos os estamos a envolver na nossa viagem. Podia descrever todo o processo de elaboração dos convites, da paciência de santo do meu amigo (quase) de sempre e acrescentar que a seguir aos convites vieram vários outros pedidos a que ele acedeu.
Podia falar sobre o vestido, sobre a ideia já muito fixa que tinha. Podia explicar que não o encontrei em loja nenhuma, que por isso o mandei fazer - e que nesse processo houve dias felizes e outros nem tanto - e que ficou exatamente como eu queria. Podia falar sobre os saltos que eu não queria levar, sobre as meias que eu queria que não fossem precisas, sobre o facto de quase me ter esquecido de comprar a lingerie e de essa ter sido uma das últimas aquisições, já a menos de uma semana do casamento - e podia dizer que houve até quem tivesse sugerido que simplesmente não levasse.
Podia falar de todas as pessoas que fizeram parte deste processo, enumerar as inúmeras provas da paciência do meu quase, quase marido. Da mãe hiperativa. Das irmãs. Do cunhado. Da madrinha. Das amigas. Das colegas. Podia falar do entusiasmo dos meus alunos por estarem presentes na cerimónia e até dos textos que um ou outro escreveram sobre o tema, com títulos como "Como será o vestido de noiva da minha professora?". Podia dizer que suspeito que andaram a tramar alguma e que as reuniões de pais do terceiro período serviram essencialmente para falar sobre o casamento - e de outras questões menores.
Podia dizer que estou emocionada, que por vezes vou no carro e as lágrimas me vêm aos olhos - mas lágrimas das boas, lágrimas por saber que estarei rodeada por pessoas de quem gosto muito e que desta vez será por um bom motivo. "Só nos vemos em casamentos e funerais". Hoje será por um motivo feliz. Hoje vai ser uma festa. Hoje é o meu casamento. E eu choro. De emoção. De alegria.
Mas. Porque há um mas. Porque em momentos felizes como este haverá sempre um mas. Estou feliz, emocionada, sinto-me acarinhada MAS. Porque em dias felizes como este a tua presença faz-me tanta falta. E a tua. Porque já passou tanto tempo - e tanto há ainda por passar - e me faz falta o abraço, o orgulho, o carinho. Porque me faz falta a emoção, o entusiasmo. Porque me faz falta a presença física, ainda que te traga sempre comigo. E a ti. Procurar-vos-ei nos olhos de todos, de cada um. Nas palavras, nos abraços, no carinho. E em mim.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

1 de maio de 2015

Estou triste. Triste e desiludida. Desiludida comigo, contigo, connosco. Triste e desiludida pelas pequenas coisas, por perceber que afinal somos iguais, que afinal também nós caímos nisto de ligar demasiado às pequenas coisas, aos tons de voz, ao que o outro não disse e devia ter dito e, especialmente, ao que o outro disse demais.
Estou triste e desiludida por perceber que as vozes se levantam, por perceber que sinto uma força a subir por aqui acima e que, depois disso, já não a consigo domar. Estou desiludida e em luta comigo mesma, com esta força súbita e arrebatadora, com esta falta de controlo, com este querer virar costas à primeira dificuldade, com esta saudade - nestes momentos em que me desiludo - dos tempos em que era só eu e me chegava.
Talvez tenha de me render às evidências, de aceitar que nem sempre vai ser o mar de rosas - e de calma, paciência e compreensão - que era ao início.
Mas estou triste. Triste e desiludida. Desiludida porque ao confrontar as minhas expectativas com a realidade percebo que estas eram demasiado altas, demasiado boas, demasiado ambiciosas. Demasiado.
Estou triste. Triste porque os dias bons correm depressa demais e os outros, quando maus, se arrastam no tempo, prolongando tristezas, pesando cá dentro, arrancando palavras que não deviam ser ditas, questões que não deviam ser colocadas. Estou desiludida com a minha (in)capacidade para parar, respirar, acalmar, para me ver de fora, para ouvir o tom com que falo, para conter a ironia e o sarcasmo, para ceder à vontade alheia. Estou triste com as lágrimas que me escorregam pelo rosto e com a contagem que vou fazendo - ainda que a lista seja curta.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

2 de abril de 2015

Enquanto, de luzes apagadas, lhe cantávamos os parabéns. Foi assim, naquele bocadinho - que não sei ao certo quanto dura.
Reunimo-nos ano após ano, quase sempre os mesmos, seja dia de semana ou fim-de-semana. Reencontramo-nos, muitos de nós, apenas naquele dia. Comentamos:
- Aquele está mais envelhecido.
ou
- Estão umas mulherzinhas!
Reunimo-nos em diferentes zonas, diferentes grupos. Fala-se da crise, das obras nas Caldas, do Passos e do Portas e, agora, também do casamento. Vemo-lo crescer e ouvimos o seu crescimento ser comentado vezes sem conta por quem só anualmente o vê:
- Estás mesmo grande!
- Está um homenzinho...
As horas passam. Juntamo-nos todos em redor da mesa grande da sala  para cantar os parabéns. Apagamos as luzes e começamos:
- Parabéns a você...
E como se o tempo tivesse parado - ou como se apenas eu tivesse parado. É o seu décimo sétimo aniversário. Os pais estão ao seu lado. Os olhos dele, pousados nela, cheios de orgulho. 
E então vi-me de fora, com dezassete anos. Permiti-me ver-me de fora, olhar para mim naquela altura, há já quase dez anos.
Com dezassete anos ele ainda me olhava assim. Quando os fiz, ele já estava doente. Durante o meu décimo sétimo ano de vida vi-o desaparecer a passos largos, quilos e quilos de cada vez. Com dezassete anos amparei-o a ele, segurando as lágrimas e deixando que caíssem apenas cá dentro.
E se? E se lhe acontecesse o mesmo? Que estranho seria vê-lo ir-se, vê-la lidar com isso. Terá sido estranho para os que me viram lidar com a doença dele? Terá sido estranho ver-me com dezassete anos a procurar ser forte, a crescer à força?
Olhei em redor e quis dizer-lhe. Dizer algo como:
- Cat, eu só tinha a idade dela
e
- Ele também me olhava assim
Mas calei-me. Evitei constatar o óbvio. Pensei que fosse soar estranho. Dizer para quê? Para lembrar que aconteceu? Para que tivesse pena de mim?
Uma semana depois, sentada naquela cadeira que conheço bem, revi o mês. E alonguei-me aqui. Alonguei-me por entre lágrimas que trouxe do fundo de mim, com soluços e nó na garganta. Expliquei que não esqueço, que não esqueci. Provavelmente trarei sempre comigo a última vez em que o vi, as últimas palavras. Recordar-me-ei de o ter ajudado a tomar banho, dos soluços dele, do cheiro a sangue, a entranhas, a morte. De forma enevoada recordarei conversas, imagens. Eu e ela na paragem do autocarro e eu a dizer-lhe:
- O cheiro, o cheiro...
(e tremo ainda com a lembrança).
Alonguei-me a explicar a vergonha que sinto por isto, por esta pena de mim - que não suporto. Aprendi a dar-lhe outro nome: compaixão.  Tenho direito a ela, mereço-a e devo permitir-me senti-la sem vergonha. 
O tempo continua a passar. Sou trazida de volta pelas vozes em redor
- ...uma salva de palmas.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

10 de fevereiro de 2015

A minha J. começou a ler. Finalmente. Já.
A minha J. já começou finalmente a ler.
Sou professora desta turma há 3 anos. Trago-os comigo desde o 1.º, quando lhes faltavam ainda os dentes, a altura, a maturidade. Tive as minhas batalhas. Olho para trás e percebo que venci (vencemos) a maioria - mas não todas.
O ano passado tive de as deixar para trás, de as deixar cair. E ainda que acreditando ser o melhor para as duas, continuo frequentemente a sentir que as deixei para trás - embora as veja felizes, embora as veja ainda a lutar para acompanharem os grupos. Fui quem as deixou para trás, quem não as conseguiu trazer consigo.
Hoje a professora da minha J. (será sempre a minha J.) veio dar-me uma boa notícia.
- A J. está a ler!
E eu sorri. Sorri por fora e por dentro, ao mesmo tempo que as lágrimas me enchiam os olhos. Quando ela se levantou a Ana disse-me o seu
- Então?
e as lágrimas escorregaram-me pelo rosto. Chorei de alegria e de orgulho nela - sempre. Chorei de tristeza porque eu não vi, porque não foi comigo, porque não fui eu quem conseguiu levá-la até lá, porque fui quem a deixou. Porque não consigo deixar de me perguntar
- Terei feito tudo?
e porque, sempre que o faço, me esqueço de tudo o que nos dificultou este processo desde a raiz.
À tarde ela foi visitar-nos. Encaminhou-se para a biblioteca e quando lhe perguntei se queria ler só para mim ou se para todos ela respondeu, segura:
- Para todos.
E então os 48 olhos pousaram-se nela e eles deixaram-se ficar a ouvir. E vi, em cada um dos 24 sorrisos, um orgulho maior porque a nossa J. já lê. Elogiaram-na e ela quis fugir de vergonha.
A minha J. já lê. E eu não consigo deixar de me colocar em causa.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

5 de fevereiro de 2015

Hoje fazes 6 anos.
Lembro-me como se fosse hoje. Era um sábado (ou talvez um domingo) e eu estava a trabalhar. Estava no último ano da faculdade e aproveitava os fins-de-semana para ganhar um dinheirinho a fazer festas de aniversário no Sporting. A minha irmã ligou-me e eu rejeitei, explicando por mensagem que estava a trabalhar. Ela respondeu
- Tens de atender!
E eu liguei de volta. Então soube que vinhas a caminho.
Seguiram-se meses de ansiedade. A barriga dela crescia e eu queria que tu saísses para te poder conhecer. Quando uma ecografia se aproximava eu desejava que o teu pai não pudesse ir para que fosse eu a ver-te em tempo real. Punha a mão na sua barriga à espera de te sentir. E um dia senti, a sério. Pensamos mesmo que terás dado a volta quando a minha mão estava sobre a barriga da tua mãe. Por segundos achei que fosses rasgá-la e sair naquele preciso momento.
Deixaste-te estar confortável por 40 semanas e 1 dia, até que, no dia marcado como data limite te trouxeram ao mundo. Nesse dia eu estava a dar aulas no meu estágio. Tinha avisado logo de manhã que estava à espera de uma chamada muito importante. A dada altura, penso que por volta do meio dia, o teu pai telefonou-me e eu saí disparada de telemóvel na mão. Quando reentrei os miúdos estavam a fazer uma festa porque a Filipa, minha colega, lhes havia explicado tudo. Nenhuma de nós esqueceu esse momento.
Estás crescido.
Lembro-me de que começaste a falar cedo e que começaste quase desde logo a construir frases, cada vez mais completas, mais complexas. Lembro-me de que ficava (e fico) espantada com o teu vocabulário e com os teus raciocínios. Sem termo de comparação para a idade, foste para mim sempre um pequeno prodígio.
Lembro-me que te rias à gargalhada quando o ouvias falar. Lembro-me que perguntaste por ele vezes sem conta. Lembro-me que gostei de ti desde o primeiro dia. Temos o nosso código quando algum quer ouvir que o outro gosta de nós. Orgulho-me de o ter criado contigo desde tão cedo:
- Como o macaco gosta de banana...?
- Eu gosto de ti!
A dada altura um amigo sugeriu-me que devíamos diversificar e a isso também achaste piada:
- Como os gordos gostam de comer doces...?
- Eu gosto de ti!
E gosto, gosto muito.
Há pouco tempo foste dormir a minha casa num dia de semana. Isto depois de teres mudado, daquela que sempre foi a tua escola, para o meu colégio; depois de nos teres mostrado que eras capaz, que estávamos a menosprezar a tua capacidade de adaptação. Foste comigo da escola para casa, fizemos uma atividade, tomaste banho, secámos-te o cabelo, jantámos, contei-te uma ou duas histórias tontas acabadas de inventar e adormeceste. E eu voltei uma, duas, três vezes, só para te observar. Que delícia.
Um dia, não há muito tempo, tentava explicar a uma amiga o quão importante és para mim. Disse-lhe algo como só um dia, quando tiver um meu, vou gostar tanto de alguém como gosto dele. E mesmo nessa altura, vou gostar tanto de ti!
Parabéns, meu bebé. Hoje fazes 6 anos. Pequeno homenzinho!


sábado, 24 de janeiro de 2015

24 de janeiro de 2015

Hoje escolhi o vestido.
Quando há cerca de seis meses fui pedida em casamento já tinha uma conta no pinterest. Pouco tempo depois, quando escolhemos a quinta ("simples", "campestre", "alternativa"), foi lá que comecei a procurar vestidos. Queria-os assim: simples e campestres. Selecionei logo o meu favorito e não mais o esqueci. Andou no meu telemóvel, circulou em emails restritos e em mensagens para um ou dois amigos. Fui tendo muito vontade de o partilhar à mesa, nos nossos jantares a dois. Contive-me.
Em dezembro achei ser altura de o procurar a sério - e receei não o conseguir encontrar. Pensei que talvez fosse necessário fazê-lo de raiz, para mim, de propósito. Recorri a um ateliê que sigo há já algum tempo, acompanhada pela mãe e irmãs. Apresentei ideias, ouvi conselhos, respondi a perguntas. Mas foi preciso provar alguns, ter a certeza de que o que queria me ficaria bem. Então fomos as quatro, loja após loja.
- Queria assim como este - e mostrava a imagem no telemóvel.
- Hum...não. Temos este assim - diziam, apontando um bem diferente - mas assim como procura não. Mas sabe, hoje em dia com a internet as pessoas vêm com ideias muito fixas que muitas vezes nem lhes ficam bem.
Sorrio - de forma forçada. Passamos à próxima. Entramos e a funcionária que se dirige a nós faz-nos viajar ao passado. Mostro a imagem - mais uma vez - e vejo o que me traz. Brilha. Brilha por todos os lados. Mas se me esforçar, se me esforçar a sério, talvez consiga ver apenas o que está por baixo. Foi preciso experimentar dois para me ver com uma parte de cima e com uma parte de baixo semelhante - um pouquinho - ao que procurava. Mas ao olhar-me ao espelho não me emocionei nem um pouco. No final a minha mãe estava a dar o meu contacto e eu, ao completá-lo, talvez me tenha enganado num número ou outro.
Hoje voltei ao ateliê para escolher entre três.
Hoje escolhi o vestido. E os tecidos. E foi confuso. Confuso porque inicialmente me pareceram todos iguais. Com remate ou sem, mais branco ou menos branco - igual. Valeu-me a experiência da P., um brilhozinho cá dentro e a opinião das manas e da mãe. Fiz a depilação à pressa esta manhã e afinal as medidas foram tiradas sobre a roupa.
Esta semana tivemos um encontro com o padre. De amanhã a seis meses casamos. Hoje escolhi o vestido. Está a tornar-se real.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

16 de janeiro de 2015

Há alguns anos fui arrancar um dos sisos, o primeiro, escondido - como os restantes - ainda dentro da gengiva. O médico era de confiança, "um especialista". Aguentei as anestesias - várias - com o corpo contraído na cadeira. Quando saí, já com um saco de gelo entalado entre a mão e a cara, encostei-me ao meu cunhado e deixei que a tensão acumulada me saísse, escorregando molhada, pelo rosto. Lembro-me de o ter ouvido dizer
- Então?...
e aquele momento ajudou-me a construir a ideia de que, quando nervosa, o que me é mais fácil é chorar. 
Voltei. Voltei mais três vezes, uma por cada siso. Na última, a anestesia doeu-me tanto que estive prestes a desistir.
O ano passado, ou talvez já no anterior, o médico da medicina no trabalho questionou-me, ao saber do historial médico familiar, se já tinha feito uma endoscopia. Não tinha. Lá fomos as duas. Vesti a bata, calcei os chinelos, e enquanto o enfermeiro me tentava canalizar uma veia, as lágrimas caíram-me. Essa foi a minha primeira vez em ambiente hospitalar. Não foi uma urgência, não foi uma cirurgia - mas eu chorei.
Nunca fiz uma cirurgia - até ontem. Foi pequena, é certo; foi até mais por uma questão estética e de conforto, mas foi, ainda assim, uma cirurgia. Um terçolho que não se ia embora sozinho. O tamanho foi reduzindo mas a cápsula continuava lá.
Estava ansiosa ainda no corredor. Chamaram-me, pediram-me que me deitasse na maca e colocaram-me umas gotas nos olhos. Por momentos quis dizer
- Enganou-se, é só num dos olhos...
mas limitei-me a ouvir a explicação de que se tratava de uma ligeira anestesia, que depois o doutor me daria a outra.
- É normal sentir os olhos a latejar?
perguntei, pensando numa possível reação alérgica.
Tentei sorrir para cumprimentar o médico, aligeirar um pouco o clima sério do bloco. Ouvi a sua explicação às enfermeiras sobre estes quistos e aproveitei para mentalmente me culpabilizar pela falta de líquidos que pode bem ter ajudado. Assustei-me quando me cobriram a cara "para isolar o campo" e agarrei, com força, uma mão com a outra para conseguir suportar melhor a anestesia - a de agulha. Ouvi que
- Agora vai sentir uma pressão...
ao mesmo tempo que a vista se cobriu. A enfermeira perguntou-me
- Está a conseguir respirar bem com o pano?
e eu apercebi-me de que estava, simplesmente, a suster a respiração.
Não doeu. Foi como que tirar (muitos) pelos com uma pinça - e pensar que o médico não estava a conseguir. Abri e fechei as mãos várias vezes e acreditei, mesmo, que a dada altura uma das duas enfermeiras me ia agarrar a mão - o que não aconteceu. Ele parou, disse que já estava. Explicou-me os cuidados - e eu pedi-lhe que repetisse 10 minutos depois, como se estivesse em loop. Puseram-me um penso e eu pedi para me levantar, sem perceber o quão alta estava. Tremia-me o queixo enquanto falava e tremeu-me o corpo todo quando percorri o corredor pelo meu próprio pé até ele, vendo apenas de um olho. Sentia-me limitada. E assustada, muito assustada. Quis chorar mas tive medo. Do olho tapado via apenas vermelho. Receei que também os outros o vissem e perguntei vezes sem conta se ainda não se via. Quis limpar o pingo do nariz - estou constipada - mas era vermelho e assim, aos 27 anos, descobri que quando se sangra do olho este corre também pelo nariz. Dei-lhe a minha mão que tremia e senti-me pequena. 
Já no carro, no lugar do pendura, a chorar para dentro como tive de fazer há já quase uma década, a ver mal e de uma vista apenas, percebi que afinal eu não sou diferente dela - tenho tido apenas a sorte de não ter, em termos médicos, muito com que me preocupar. E isso assustou-me. Muito.