terça-feira, 30 de dezembro de 2014

29 de dezembro de 2014

Fomos às compras juntas, como já não íamos há algum tempo. Mais tarde, sentadas à mesa para almoçar, ela perguntou-me:
- 2014 foi um bom ano para ti?
Fui surpreendida pela pergunta, ganhei tempo para a resposta:
- Como assim?
E enquanto se explicava pensei, tentando passá-lo rapidamente em revista.
Este ano passou a correr. Entrou lançado, cheio de (boas) emoções. Cresci - e crescemos juntos. Fui pedida em casamento - e aceitei. Fiz muitos quilómetros cá dentro, embora não tenha feito nenhuns lá fora. Fiz as malas, mudei-me e agora sinto todos os dias a tranquilidade ao passar a ponte, de vidro parcialmente aberto e cigarro na ponta dos dedos, já com o sol a descer à direita, para além do rio. Continuei a ver os meus miúdos crescer e tranquilizei-me por ver felizes também os que tive de deixar. Continuei a acreditar no projeto em que trabalho, embora não deva esquecer o futuro. Dei-me menos, dei-me pouco - e depois equilibrei-me. Gradualmente fui-me sentando menos na cadeira (não muito) confortável e continuei - continuo - a deixar que as lágrimas me escorregassem pelo rosto até ao sorriso mais abaixo. Recebi notícias que me entristeceram. Continuei a sentir a falta dos que já não estão. Vi os meus à procura de si mesmos e isso tranquiliza-me, ainda que estes processos levem o seu tempo. Caiu o primeiro dente ao meu sobrinho. O meu avô fez uma cirurgia e continua fino. Estive com os meus amigos. Estreitei laços com colegas de trabalho. Li bastante.
- Oh, sim, foi.
e depois pensei mas escrevi pouco.


(hiperligações a negrito)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

25 de novembro de 2014

Fico aqui sentada a ver o tempo a passar. Penso
- podia ligar-lhe para falarmos um bocadinho
mas depois lembro-me que isso implicaria ficar aqui sentada ou ter de aguentar o braço esticado à minha frente.
Penso que se lhe ligar vou ter tendência a olhar para a minha imagem no canto esquerdo, verificando se a minha franja se encontra composta o suficiente ou se, pelo contrário, se abriu ao meio pela falta de corte. Penso que se não olhar para a minha imagem olharei para a dela - e que o meu coração se vai apertar um bocadinho enquanto evito fazer "aquela cara".
No outro dia no trânsito - que é dos momentos, juntamente com o banho, em que mais me deixo pensar - apercebi-me mais uma vez de que tudo acontece quando tem de acontecer. Não sei se tudo, tudo mas grande parte. Por exemplo, eles nunca poderiam ter ido antes. Seria o fim do mundo em cuecas. E então, felizmente, eles não foram.
Foram vários os dias em que atravessei a ponte a caminho de sua casa, vidro aberto, cigarro na mão - longe ainda de saber que em breve este percurso passaria a ser o meu, dia após dia. Sempre achei que havia algo de tranquilizador neste percurso. O sol a pôr-se à direita, lá mais à frente, sobre a água.
Antes de ela ir para lá durante vários meses, começou por ir apenas um mês. Foi visitá-lo, foram passear. Um dia, enquanto falávamos pelo Skype, ele disse
- Temos uma coisa para te dizer
mas o
Temos uma coisa para te dizer dito com ar solene, sério. E eu perguntei a medo
- Já não voltam?
- Não - disse ele. 
Depois explicitaram. E eu desviei os olhos da câmara, desviei-os para que não vissem que brilhavam com aquele brilho molhado. E ouvi-a dizer
- Não faças essa cara.
Uns dias depois - ou talvez uns dias antes - ela disse-me que estava agora mais descansada porque sabia que não me deixava sozinha, teria sido pior noutra altura. E eu não podia concordar mais. Esta, como muitas outras coisas, aconteceu quando tinha de acontecer - ainda que eu preferisse que não acontecesse nunca.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

5 de setembro de 2014

Cedo demais*
E eu continuo sem perceber o porquê. Continuo a revoltar-me, a cerrar os maxilares, a achar uma injustiça. Mas estou crescida. E, apesar da tua ausência, feliz. Incompleta talvez. Queria que visses. Queria que estivesses cá para ver, para participar. Faço projetos para o futuro e sei que me vai doer no dia, nos dias. Sei que ao escrever estas palavras as lágrimas me saltam – agora de forma pouco discreta – e que cerro os punhos vezes sem conta, batendo um contra o outro, esmurrando o ar. Mas sei que trago muito de ti em mim e o que sou também a ti o devo – e, até, à tua ausência tão antecipada [continue lendo aqui ].
*Texto publicado na íntegra no Brasil, no Blog A Vida em Posts

segunda-feira, 14 de julho de 2014

14 de julho de 2014

Palavras para quê? *
Vou escrever para dizer que a vida (agora) corre bem? Que cada dia é mais feliz do que o anterior? Vou escrever para pisar – ainda que sem querer – na ferida alheia, para que alguém sinta que a sua vida é mais miserável, mais sem jeito?
Posso escrever para fazer acreditar: acreditar que [continue lendo aqui ]
*Texto publicado na íntegra no Brasil, no Blog A Vida em Posts

terça-feira, 1 de julho de 2014

1 de julho de 2014

A vida dela está prestes a mudar. Ela sabe.
Daqui a uns dias - poucos - o namorado irá pedi-la em casamento. Desta vez ela não imaginou: ele disse-lhe, pensando que ela já percebera.
Andam nisto há já umas semanas, desde o dia em que ele lhe pediu que reservasse uma data. Ela achou que iriam de fim-de-semana, ele disse-lhe que seria desta.
Na prática, a vida pouco mudará. Continuarão a partilhar o mesmo espaço, os mesmos tempos. Terão planos em mãos, planos quentinhos e a precisar de definição rápida - mas pouco ou nada se alterará.
Ela anda a conter a ansiedade para que as suas mãos não abram e fechem gavetas, para que os seus olhos não vejam o que ela finge ainda não querer ver. Ele anda atarefado com os planos, a escrever notas em blocos pela casa - dos quais logo tira as folhas escritas - ou no telemóvel. Ela está feliz e ele, apesar de preocupado, não está menos. Ela tem um sorriso (daqueles a que costuma chamar "idiota") e parece que agora o coração ainda lhes bate mais depressa no peito. Ela quer dizer a toda a gente mas quer, ao mesmo tempo, conservar a boa nova só para si. Terá até já definido a lista ordenada para divulgação mas está em alguns casos indecisa - família ou amigos?
No outro dia, para não perder tempo, enviou uma mensagem a uma organizadora de eventos, explicando sucintamente o que esperam do grande dia. Recebeu em resposta os parabéns pelo noivado e a proposta de uma reunião. Parabéns pelo noivado? pensou. Nunca ninguém lhe tinha dado os parabéns pelo noivado.
E assim o tempo se vai passando, um dia após o outro. A contagem decrescente, arrastando-se, a deixá-la cada vez mais ansiosa. 



terça-feira, 27 de maio de 2014

26 de maio de 2014

Mais (do que) uma carta.*
Estou aqui, sentada de frente para a rua, com a perna direita, cruzada sobre a esquerda, a baloiçar no ar – ou as pontas de ambos os pés pousadas ao de leve no chão e as pernas a agitarem-se, a agitarem-se. Estou aqui a segurar a lapiseira amarela entre os dedos e a procurar ignorar a vontade de segurar antes um cigarro. Estou aqui a tentar encontrar as palavras para te escrever nesta folha de linhas estreitas pousada sobre a mesa. E vou escrevendo estas enquanto não encontro as outras.
Esta carta é mais do que uma simples carta. Esta carta não chega bem a ser uma carta. Esta carta, estas palavras, existem apenas para acompanhar as outras, para acompanhar o maço de cartas que segue também neste envelope. Esta carta existe para que tudo te seja dito. TUDO! – ainda que depois desta estar selada me possam ocorrer uma série de outras palavras que gostaria também de te dirigir.
Quero com esta carta explicar-te o significado de todas as outras. Quero, com esta, tornar-te mais acessível o conteúdo de cada uma das outras. Quase que traduzir-tas para um tempo, para uma altura, em que vivias em mim – porque só à luz dessa realidade elas te poderão fazer um (ainda que ínfimo) sentido.
Continuo aqui sentada. Não me mexi daqui mas há já no ar um fumo ligeiro, um fumo que inspiro profundamente, um fumo que, espero, me ajudará a apaziguar esta ansiedade que se me acumula na garganta. Um fumo que eliminará este nó que se me formou na garganta quase ao ponto de me tirar o ar.
Porque o faço agora? O que me leva a reunir todos os escritos e a endereçar-tos tanto tempo passado? Porquê reavivar o que já foi, o que não volta mais, o que não mais quero que volte?
Porque preciso de to dizer. Preciso de te entregar todas as palavras para que saibas. Para que percebas agora o que antes te tentei dizer. Para que te pertençam – talvez na esperança de que, pertencendo-te, me abandonem de vez.
Preciso de to dizer para partilhar contigo tudo o que foi em mim – ainda que em ti pouco tenha acontecido. Preciso de to dizer, palavra por palavra, para que os teus olhos se pousem lá mais atrás, para que dês – ainda que seja tarde – atenção a tudo o que disse, a todas as pequenas (grandes) atenções, a todas as palavras que leste com o dedo a arrastar-se sobre o rato.

Podes guardá-las assim. Intocadas. Coloca-as numa caixa – numa daquelas que acumulamos nos sótãos de casa dos pais, numa daquelas em que não voltamos a mexer – não até que as coloquemos num caixote do lixo a meio de umas quaisquer mudanças. Coloca-as numa caixa e diz-me que não as recebeste, que não te chegaram, que os correios não funcionam neste país em que vivemos. Mas guarda-as em ti, por favor. Guarda-as em ti que em mim já não cabem mais. Já não pertencem aqui.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 26 de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

19 de maio de 2014

Palavras que me faltam*
Como dizer? Como dizer – assim, com palavras –  o que me corre nas veias, me palpita no peito, me borboleteia na barriga? Como dizer – dizer mesmo, palavra atrás de palavra – que o que tenho, que o que me percorre, me faz viver num misto?
É bom. É tão bom. É tranquilo. Tranquilo e intempestivo (e tudo assim, ao mesmo tempo).
É sorrir porque se tem. É recear perder – hoje, amanhã, noutro dia qualquer. É viver de sorriso posto. De sorrisos postos.
É abrir a cama à noite e ter mensagens à espera. É chegar depois do trabalho e ter bilhetes pousados na cómoda, juntamente com uma mensagem que só se lê depois – quando a vista está já enublada. É marcar cada momento importante – com palavras, com as que nos trouxeram até aqui. É colecionar bilhetes de comboio de viagens que são apenas nossas.
É descobrir que se pode falar sobre tudo – TUDO – sem que as vozes se elevem numa procura quase desesperada de razão. É amuar às vezes. É pedir mimo. É falar sobre o que perturba. É ver – ver com os olhos – que é possível que nada se perca, que se mantenha, que melhore.
É ser feliz – ainda que faltem as palavras para dizer o quanto. (Ainda que as palavras me façam falta).
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 19 de maio de 2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

5 de maio de 2014

esse medo (não) passa*
Parece que esse medo não vai passar nunca. Medo da(s) dor(es). Medo da morte. Medo da perda. Medo dos espaços vazios, dos corações vazios, dos tempos vazios. Medo dos corredores brancos, das paredes brancas de hospital, com cheiro de hospital.
À medida que o tempo passa, que as dores se afastam, que a morte se distancia – a morte que foi – assumem-se as dores como lembranças dos tempos que foram e não voltam mais. É como se as pessoas, as que foram e não mais voltaram -não mais voltarão – tivessem levado consigo as dores que parecia terem deixado em nós.
Deixamos de temer a própria sombra, deixamos de pensar numa qualquer desgraça que possa acontecer, que possa separar-nos dos nossos. E, no entanto, de repente, somos atirados de volta ao passado: os corredores brancos, as paredes brancas, o cheiro a hospital. Só nós não somos mais os mesmos. Estamos mais crescidos – mais crescidos e menos fortes. Os fantasmas do passado a correrem atrás da sombra. Os fantasmas do passado quase a apanharem-nos. Os fantasmas do passado a pisarem-nos os pés. E isso dói.
Doem-nos as dores de hoje juntamente com as de antes. Então aperta-se mais a mão pousada na cadeira ao nosso lado. Abraça-se o braço esticado na nossa direção como se isso nos pudesse salvar de um qualquer destino.
Parece que esse medo não vai passar nunca. O medo de passar por aqui uma vez mais. O medo de perder novamente – aquele género de perdas de que nunca se recupera. O medo de que haja uma qualquer partida do destino a atravessar-se no caminho agora que tudo segue bem, que tudo segue tranquilo. Uma vontade a crescer-me no peito. Uma vontade de gritar que agora não, que agora já chega, que não há direito de me abanar os alicerces novamente – não agora que estou segura aqui.
E eu achava que o medo já havia passado. Mas talvez, afinal, ele não passe nunca.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 5 de maio de 2014

28 de abril de 2014

Até ao próximo ciclo*
Primeiro o embate de se estar sozinha. Sozinha. So-zi-nha. O sofá torna-se o melhor amigo, as séries vão passando na televisão, episódio após episódio e passam-se dias – vários – sem que se saia de casa. A comida desce a custo e os quilos vão descendo depressa na balança – não um a um, antes aos pares, antes vários de uma só vez. Até que, passado algum tempo, passamos a sair – muito.
Ganha-se gosto aos horários próprios, às horas que não pertencem a mais ninguém. Olha-se mais para dentro, com uma maior profundidade. Vemo-nos melhor do que antes, melhor do que outros. Conquista-se um espaço próprio e a forma de vivermos bem com todo o tempo, todo o espaço, tudo o que é agora apenas nosso.
E depois cansamo-nos – pelo menos parcialmente. Gostamos de tudo quanto fazemos mas há momentos que gostaríamos de poder partilhar. Um bocadinho hoje, um bocadinho do amanhã que gostaríamos de viver com alguém ao lado, alguém com quem partilhar a felicidade que temos em nós, alguém com quem a fazer crescer.
A pessoa aparece. Primeiro as borboletas na barriga, os risos tontos, a descoberta constante do outro, de um “nós”, de se estar apaixonada. Mas às vezes o medo a bater-nos à porta, a calar os sorrisos, a travar os beijos, a criar barreiras. Tememos a dependência, tememos um possível embate de se voltar a ficar sozinha. Colocamos travões para evitar embates. Provocamos embates por tanto medo de repetir erros do passado.
Ciclos. São ciclos que provocam medo. Mas refletindo com calma – se se encontrar calma – a mudança é isso também: medo, conquista, estabilização. Até ao próximo ciclo. Há que aproveitar.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 28 de abril de 2014

segunda-feira, 31 de março de 2014

27 de março de 2014

Agarra-me bem*
E quando eu quiser fugir, por favor não me deixes ir. Quando me assustar, quando sentir uma ameaça a aproximar-se - podendo ser real ou não - não me deixes ir. 
O meu primeiro impulso vai ser fugir-te. O meu impulso será sempre afastar-me. Vou querer fugir ao conflito, à dor antecipada, ao nó que se me forma instantaneamente no peito. Às lágrimas que se equilibram entre as pestanas inferiores enublando-me a vista.
As minhas pernas vão agitar-se, vou querer fumar um cigarro enquanto procuro acalmar o ímpeto de simplesmente me levantar e sair sem trocar uma única palavra que possa explicar (minimamente) o que me vai cá dentro. Vou querer afastar-me. Vou querer afastar-te. Poderei até querer ser um pouco cruel. Não cruel, sincera. Posso querer ser sincera a um nível que só neste estado me arrisco a ser - e que por isso mal conheces ainda. Posso querer espetar-te uma faca no peito e rodá-la ainda, uma e outra vez. Posso querer meter-te medo mostrando-te o pior de mim - só para que te prepares, só para que saibas com o que podes contar e não mais te desiludas.
Talvez depois eu consiga respirar fundo. Inspirar, segurar, expirar. Inspirar, segurar, expirar. Mas continuarei a fugir. A afastar-te com palavras e gestos. 
Agarra-me bem nessa altura. Não me deixes fugir-te. Agarra-me para que saiba que é aqui que devo estar, para que saiba que é aqui que me queres. Porque em alturas assim eu vou deixar de saber. Colocarei em causa cada gesto, cada palavra. Duvidarei do presente - quanto mais do futuro. Mas por favor agarra-me bem, deixa que me esconda - mas em ti. Eventualmente eu acabarei por falar, por expulsar sob a forma de palavras as dores que me pesam no peito. Mas até lá, enquanto procuro apenas proteger-me, por favor não me deixes ir.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 31 de março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

23 de março de 2014

Que fosse a primeira. Ao tropeçar em pedaços do passado alheio, apercebo-me do quanto gostaria de ser a primeira. 
Os sorrisos, as quase lágrimas de felicidade, os apertos sucessivos. Por vezes queria que nunca tivessem existido, que os partilhássemos, nós, pela primeira vez. Que todos os planos feitos a dois fossem inéditos, que os nossos olhos nunca antes tivessem pousado lá mais à frente, que os espaços que agora partilhamos nunca antes tivessem sido ocupados.
E, no entanto, o passado está em nós. Há um rasto que nos segue. Há rostos. Amores e desamores. Dores imensas a encerrarem momentos felizes - aqueles, que julgáramos serem para sempre.
E hoje, quando nos olhamos olhos nos olhos e fazemos planos para o futuro, por vezes questiono-me:
- Será realmente diferente?
ou
- Por que será diferente desta vez?
Se nada tivesse falhado antes seria fácil não questionar. Assim, fica mais difícil.
Ainda que a resposta esteja em mim, ainda que saiba o que é diferente, há bocadinhos de mim que por vezes questionam
- Não foi sempre diferente?
Então prefiro não olhar para trás. Não tropeçar em passado algum. Quase fingir que ele nunca existiu. (Ainda que a sua existência por vezes me arranhe, me crie um nó no estômago e uma vontade grande de fugir para onde não me possa nunca magoar).

Então quase que agradeço que o passado que por vezes se atravessa no nosso caminho sem ser convidado seja o meu - porque se fosse outro talvez eu não o soubesse gerir. Gosto demasiado do lugar que ocupo - prefiro pensar que sempre foi meu.

terça-feira, 18 de março de 2014

15 de março de 2014

Os silêncios soam-me a distância. Cada minuto que decorre sem uma troca de palavras - qualquer uma - soa a distância que se inicia, que se alastra a cada minuto. E eu lido mal com distâncias.
Os silêncios deixam-me zangada. Deixam-me insegura. Deixam-me magoada. Os silêncios deixam-me em (quase) lágrimas que eu não sou capaz de segurar, tão pouco de deixar cair. Os silêncios deixam-me num misto de emoções à flor da pele que se misturam, se entranham e me baralham.
A música a tocar no rádio não interrompe o silêncio. Caminha, ali no topo dele, como que a cavalgá-lo, a dirigi-lo. Coexiste para me lembrar que o silêncio permanece, que o contraste entre o que ouço e o resto é grande. Existe para me lembrar que para além dela - independentemente do volume em que a ouça - há todo um silêncio a rodear-me, a isolar-me como que numa bolha de sabão - mas das que descem (não das que sobem) em direção a um sítio escuro.
As luzes que vão passando por mim depressa - se pudesse passariam ainda mais depressa - como que a puxarem consigo todos os momentos cheios de luz, de sorrisos brilhantes. E eu a afastar-me mais, cada vez mais, para um sítio escuro, de silêncios. A minha boca, abrindo-se e fechando-se, e as minhas mãos a desejarem um cigarro que pudessem segurar entre o indicador e o médio, aproximando-o da boca, permitindo-me inalar o fumo. A minha boca abrindo-se, procurando que as palavras me saíssem - mas um nó formado a meio caminho a impedir a saída.
Os minutos vão passando. Total silêncio para além da música. E a distância, essa, a crescer a olhos vistos. A mão a afastar-se. As pernas a retesarem-se. Os ombros contraídos e os olhos muito abertos, quase esbugalhados, a procurarem ver lá mais à frente.
Abro e fecho a boca repetidamente. Quase pego na lapiseira amarela para que as palavras me escorreguem pelas pontas dos dedos até às linhas do moleskine preto que sempre me acompanha. Mas depois, ao abrir a boca, as palavras saem-me finalmente. Assim meio para dentro, de forma pouco audível. Que depois tenho de repetir. Saem-me aos atropelos, aos empurrões. Empurram medos escondidos cá dentro. Afastam os planos para o futuro. Saem-me como pedras atiradas. Medos que se pronunciam em voz alta. E a distância ainda um fosso entre nós. Os silêncios forçados. Os olhos molhados. O abdominal a contrair-se repetidamente, prendendo o choro que a tensão em mim sempre provoca.
O meu problema são as palavras. Soltas. Em demasia. A falta delas, os silêncios, são distância de mim mesma.

terça-feira, 11 de março de 2014

7 de março de 2014

Aos (quase) fantasmas do passado*
Quero dizer-te que a notícia me deixou imensamente triste. Primeiro em choque, surpreendida.  Depois apenas triste.
Não é uma notícia que se espere receber. Ali, no meu local de trabalho, entre pares. Não consegui segurar a minha mão antes que esta me cobrisse a boca na tentativa (vã) de conter o espanto. Tão pouco consegui segurar as minhas pernas na mesma posição e por isso me vi escorregar em direção ao chão com a parede a guiar-me o caminho. Não sei já se as lágrimas me escorregaram pelo rosto ao mesmo tempo que o meu corpo desceu pela parede ou se só depois. Sei, apenas, que a notícia me apanhou de surpresa – pelo menos naquela altura. E que enquanto acendia um cigarro a chama tremia na extensão das minhas mãos.
Conversa puxa conversa, vi-me a revisitar o passado. Ao descrever comportamentos do passado vi os fantasmas a aproximarem-se a passos largos de mim. Revisitei espaços de que me despedi faz tempo. Assisti, sentada num canto em silêncio, a monólogos travados noite(s) dentro. Revivi o desespero que me crescia no peito e me bloqueava as ações. E então todos os pequenos passos que fiz nesta corrida para longe do passado pareceram parcialmente anulados à medida que os fantasmas vaguearam ligeiros por aqui.
As palavras foram-se seguindo umas às outras – sem pedir licença, sem atender ao presente e ao quão distante este é do passado. Talvez eu lhe quisesse gritar que se mantivesse longe, que aqui não há lugar a fantasmas do passado. Talvez eu devesse ter afirmado o meu direito de não ter a vida invadida por (mais) fantasmas do passado. Podia tê-lo feito. Tê-lo-ia feito se o passado me tivesse batido à porta em vez de se ter limitado a entrar sem pedir licença. Ter-lhe-ia chamado egoísta e recordado conversas em que afirmei a distância que me separa do que foi – e do que não mais voltará a ser. Teria anulado toda a minha sensibilidade – aquela que antes me diziam ter em excesso – para colocar os fantasmas no seu devido lugar: um sítio escuro. E distante.
Mas depois, quando me voltei a erguer – embora ainda apoiada à parede – as peças foram-se compondo. Assim, uma sobre a outra, encostando-se numa sequência lógica. E então a surpresa foi substituída. Substituída por algo diferente. Como que apenas uma constatação de algo que afinal talvez se esperasse – parcialmente. Talvez esta constatação ajude a encaixar peças do passado, a arrumá-las no sítio certo. Talvez explique a queda de algumas que pareciam empurradas por uma qualquer corrente de ar. Ainda assim, há constatações que não se desejam fazer na vida. Espera-se apenas que estejamos certos nas escolhas que fazemos, nas escolhas que os outros fazem. Não se espera – ou (eu) não espero – ver outros falhar. Entristecem-me também as falhas alheias. Mas acontecendo, e previsto em parte, há por vezes o impulso de dizer
- Eu bem avisei.
Palavras que não me chegam a sair porque a razão não mais me faz falta. Porque preferia não a ter. Não nisto.
A razão traz-me questões de responsabilidade. Questão após questão. As noites tornam-se maiores, os sonos mais agitados. Um mau estar em forma de ponto de interrogação a navegar-me no pensamento, a questionar-me
- E se?
Ou
- Devia?
Mas fecho os olhos com força. Inspiro profundamente. Inspiro o presente, reavivo os sorrisos e os planos, reaqueço o coração. Estou em paz. Estou em paz com quase tudo o que a vida me foi trazendo – e com grande parte do que me levou. Talvez não o diga vezes suficientes e por isso faço agora questão de repetir: estou em paz com tudo o que foi. Digo também: estou imensamente feliz com o que é. Espero que também tu, em breve, o consigas.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 10 de março de 2014 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

22 de fevereiro de 2014

Desligar o sistema*
Às vezes isto é tudo o que precisas: desligar.
Precisas de desligar o sistema. Precisas de desligar o teu sistema.
No final de um dia difícil, de um dia em que a pressão se transforma em lágrimas e a falta da nicotina te faz morder o lábio com mais força, talvez precises de desligar o sistema.
Entrar no carro e conduzir «ao sem destino», como se não houvesse sítio nenhum a que chegar, como se cada um dos quilómetros percorridos te fizesse caminhar para mais longe das responsabilidades. Como se as lágrimas a caírem rosto abaixo, enublando-te a vista, significassem de facto que a pressão se te aliviava no peito, nas têmporas – no corpo todo.
Talvez não vás tão longe. Talvez desças apenas a avenida em que trabalhas e te aproximes do rio. Estacionas o carro o mais perto possível da margem, antes da ciclovia, e chegas o banco para trás, afundando-te enquanto dizes em silêncio a ti própria que agora podes desfazer-te um bocadinho. Despes o profissionalismo, libertas-te do papel de adulto a que a profissão te obriga, e deixas-te chorar um bocadinho. Talvez seques depois as lágrimas e pegues num cigarro para fumares lá fora, sentada mesmo junto ao rio, com ele a ir e a vir aos teus pés. Não irás fumar dentro do carro – não mais, não agora que estes momentos são a exceção e não a regra, não agora que o carro se livrou do cheiro dos teus cigarros – mas apenas na rua, com o vento a agitar-te o cabelo enquanto te mantens sentada de forma contorcida a observar o fumo a afastar-se depressa de ti.
Ao fim de semana dirás que queres dormir a manhã toda. No entanto, o teu sistema, tão habituado aos comandos externos, iniciar-se-á pontualmente à mesma hora, obrigando-te a agitares-te na cama. Estás cansada. Estás cansada e a precisar de desligar o sistema. Mas as horas passam e continuas alerta, com todos os sentidos despertos para mais um dia que se inicia – e tu a sentires que nunca terminou o anterior.
Precisas de desligar o sistema. Precisas de desligar o teu sistema.
E então à tarde, depois do almoço e de ouvires que estás agitada, deitas-te no sofá para ver um episódio de uma série – esperando conseguir vê-lo até ao fim pela primeira vez esta semana. Aninhas-te, com a cabeça na almofada e as pernas em colo alheio, e começas realmente a vê-lo. Mas, mais uma vez, e provando que precisas de desligar o sistema, ele finalmente obedece-te e os teus olhos, esses, fecham-se finalmente. Dormes. Dormes um bocadinho. E depois um bocadinho maior. Acordas com a sensação de um reiniciar de sistema bem sucedido, com o pensamento fresco e os dedos soltos. E o texto que deverias fazer sai-te afinal em vinte e seis minutos.
Precisavas mesmo de desligar o sistema. Ainda bem que o fizeste.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 24 de fevereiro de 2014 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

14 de fevereiro de 2014

Coisas que gostaria de (lhe) dizer:*
Há uma série de coisas que gostaria de lhe dizer. Agora, enquanto a vejo avançar sozinha por entre as portas de embarque, há uma enorme quantidade de coisas que gostaria de lhe dizer.
Gostaria de a proteger do que está para vir. Queria salvaguardá-la, não deixar que se magoasse mais. Queria dizer-lhe para não se empenhar tanto, para não dar tanto de si. Hoje, que a observo à distância, que já pisei os mesmos passos que agora se propõe a pisar, gostaria de a poder alertar para o que aí vem.
Queria dizer-lhe, em primeiro lugar, para recuar no tempo: um, dois, três ou quatro meses até. Queria dizer-lhe que o fizesse para que o seu coração pudesse continuar a bater-lhe tranquilo no peito, para que o ar não lhe fugisse e as suas ideias não estivessem sempre tão longe. Gostaria de a alertar para os terríveis meses de tristeza, de saudade, a que agora irá dar início. Gostaria de a poder alertar para o sentimento de perda, ainda para mais injustificada, que durante muito tempo a dominará.
As certezas que tem são as certezas de que precisa: a certeza de se saber sempre acompanhada, ainda que à distância; a certeza de se saber compreendida, ainda que considerada exagerada; a certeza de poder ter certezas – que mais tarde, garantidamente, verá como tendo sido tão incertas.
Indo tarde, e por isso não conseguindo evitar o embarque, gostaria de lhe pedir que ouvisse, mas que ouvisse uma segunda vez e que fizesse uma leitura objetiva do que ouve em vez de a adequar ao que gostaria de ouvir. É certo que o discurso pouco claro que lhe é dirigido não lhe facilitará a tarefa, mas é também verdade que é sua obrigação – e de mais ninguém – filtrar o que até a si chega. Ocupará espaços que não lhe pertencerão e que não lhe foram, nunca, destinados. Existirá em si um sentimento de pertença, é verdade, mas posso garantir-lhe – agora, à distância – que será de pouca dura. Brevemente se sentirá excluída, quase mesmo eliminada. E passarão meses, vários, até que a perda se acomode num cantinho do coração e este lhe volte a bater calmamente no peito.
Gostaria de lhe dizer que tudo passa. Agora, aqui, um ano depois, gostaria de olhar para trás e de lhe dizer que descanse, que sinta a dor que houver para sentir, que daqui a um ano tudo estará bem e que a vida – a sua, a dos outros – terá dado uma grande, grande volta. Uma volta capaz de mudar vidas. Para (muito) melhor.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 17 de fevereiro de 2014 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

10 de fevereiro de 2014

Laços que ficam
Vai ser sempre assim. São laços que ficam para sempre.
Não importa se acordamos com o despertador ao domingo para percorrermos a cidade debaixo de chuva, com o país sob alerta vermelho e a ameaça de ventos muito fortes. Não importa se ficamos até tarde num dia que vai já extraordinariamente longo, se o cansaço nos pesa nos ombros, na cabeça, no humor. Importa, isso sim, que iniciámos o dia a sorrir, com um quentinho no coração, e o terminamos à gargalhada, com as memórias avivadas e a certeza de nos sabermos um dia crianças. Importa que te sabes sempre acompanhada pelos teus. Pelos de há muitos anos, pelos de há alguns, por outros mais recentes.
Importa que quando se sentam à volta da mesa de um dos mais movimentados locais lisboetas, por entre gargalhadas e conversas mais sérias, enquanto atualizam o estado da vida de cada um, continuam a ser exatamente os mesmos: os que ficam, os que nunca deixaram de estar, os que imaginas no teu futuro. Observas as diferenças – as físicas e as outras – e valorizas cada uma das mudanças que os viste empreender, cheios de coragem e de um medo da mudança que parecem não ter. Acreditas que poderias até ficar só a observá-los, a vê-los comunicarem uns com os outros naquele jeito especial de cada um, naquelas suas formas tão diferentes de serem – mas que se completam e te completam tão bem. Importa que muito na tua vida mudou, importa que houve pessoas a deixarem-na mas que tu ficaste, que eles ficaram, que continuam todos no teu caminho. Importa que quando se levantam e seguem cada um a sua direção, te sentas no carro e dizes em voz alta
- Gosto mesmo deles.
Importa que em ocasiões festivas se cruzam, se observam atentamente e trocam abraços que dizem tanto. Importa que te conhecem como poucas pessoas, que te topam a léguas, que se preocupam contigo. Importa que te viram crescer – e continuar, ainda assim, a ser tão pequenina. Importa que detêm memórias capazes de complementarem as tuas e que têm a capacidade, que vais sentindo como rara, de te avivar as lembranças de quem já não está – e tu gostarias que estivesse. Importa que partilharam dores comuns de uma forma muito própria. Não importa se apontam os teus defeitos mais depressa do que te identificam as qualidades, importa sim que o fazem para te alertar, para que não te esqueças, para que não afastes por isso de ti quem queres que fique. Conhecem as dinâmicas familiares e têm a capacidade de te identificar como amorosa, mas complicada, reconhecendo-te traços que não perderás nunca – talvez porque com eles te mantenhas confortável e garantas a dose de mimo que de outra forma te poderia escapar. Importa que procurem preencher, como que com pequenos remendos, o espaço deixado vago por quem partiu e não mais voltará. Deixas-te ficar a observá-los enquanto comunicam, enquanto se riem à gargalhada e fazem reconstituições de situações passadas e questionas-te silenciosamente como seria? – e depois calas as questões e rendes-te ao como é das coisas que são e te fazem feliz.
E sabes, cheia de certezas que raramente te dominam, que alguns laços – como estes – ficarão para sempre. Será sempre assim.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

6 de fevereiro de 2014

Como se não te chegasse o dia de trabalho. As crianças, os pais das crianças, os problemas com o servidor,  as reuniões que se prolongam. Como se não te chegasse o cansaço das noites pouco dormidas, o peso da responsabilidade.
Sais tarde e a precisar de uma sesta, a precisar de um bocadinho para ti no sofá. Mas é já tarde demais. Enfias-te no carro e abres a porta alheia com a chave há muito confiada - como se faz sempre com os que são nossos. Deixas-te ficar a observá-lo enquanto, com os olhos muito abertos,  vê os desenhos animados do final de tarde. Fazem escavações arqueológicas em busca do T-Rex, travam batalhas do jogo do galo, molham-se com a água do banho que lhe devias dar. Quando se sentam todos à volta da mesa não consegues evitar reagir a uma provocação e quando dás por ti a tua voz está já a elevar-se demasiado alto, num tom demasiado agressivo, erguendo defesas que entre vocês não seriam necessárias. Incrédula, ouves o convite para sair. E sais. Sais mesmo. Com bater de portas, juras internas de não mais voltar e algo a molhar-te a cara, algo a enublar-te a vista. Sentas-te ao volante e a única coisa em que consegues pensar é no cigarro que precisas de fumar - nisso e na certeza de que não irás voltar. Amaldiçoas o dia em que, sem saber porquê, decidiste deixar de fumar - ou "reduzir,  apenas reduzir". Abres e fechas a boca como se inalasses e exalasses o fumo. Pegas no telefone à procura de um aconchego mas há algo em ti a querer empurrá-lo para longe. Longe. Mais ainda quando a preocupação se mistura com uma atividade contrastante e comentada - repetidamente comentada.
Procuras resolver um problema mas há outro a crescer-te no peito. Um problema com cabeça,  tronco e membros que sentes invadir-te a vida,  destruindo o sítio tranquilo e seguro a que julgavas ter chegado.
Pões a tocar aquela música - aquela, banda sonora de tantos momentos - e procuras deitar pela ponta dos dedos toda a ansiedade. Sentes o corpo - e o coração - a contrair-se sobre si mesmo, a fechar-se para o exterior, mantendo tudo o resto para além dele. Cerras os lábios com força, como ainda há poucos dias sentiras necessidade de fazer, e abres muito os olhos para que as tuas pestanas não empurrem as gotinhas pequeninas que se empoleiram no cantio dos teus olhos. E queres ferir. Atacar para ferir - não matar, magoar apenas um bocadinho. Sentes a respiração a alterar-se pelo esforço do que procuras não dizer, pelas acusações sentidas que tentas guardar em ti. E questionas-te, baixinho, até quando te manterás nas graças.
E agora que te encontras tão imensamente desapontada - agora que sabes ter perdido qualquer pinga de racionalidade - queres pedir mais tempo para ti, fechar novamente as janelas e as portas que antes abriras de par em par, eliminar de ti qualquer quentinho no peito,  apagar o registo de planos e os desejos que ias já tomando como teus. Queres dizer o que tantas outras vezes quiseste dizer- Não me assustesOu- Não faças com que te queira fugir.
Porque talvez agora o queiras um bocadinho.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

27 de janeiro de 2014

banda(s) sonora(s) da vida.*
Há um friozinho sorrateiro a entrar devagarinho. Enquanto a música te enche o quarto – num tom suave – e te movimentas no vai e vem de quem tem uma casa de que cuidar, sentes que te está a crescer no peito e a ocupar um espaço que não lhe pertence mais. Um friozinho na barriga, um rubor na face, uns olhos de repente quase humedecidos.
A banda sonora de momentos com sabor a doce. A banda sonora de quando, deitados lado a lado, os corpos nus entrelaçados sob o edredão, ela se deixou ficar a ler mais um livro enquanto ele usava os seus dedos dos pés para marcar o ritmo nas pernas dela. Talvez ela não se recorde mais do livro que lia mas a banda sonora – memória auditiva – continua associada à outra, fotográfica, em si sempre tão persistente.
Associado aos olhos quase humedecidos, um sorriso que ela guardará sempre para as histórias quase felizes, para as histórias-felizes-por-pouco-tempo que ela julgara serem para sempre.
E a música continua, faixa após faixa. A dado momento ela terá pousado o que transportava, abandonado os afazeres, ter-se-á deitado sobre a cama e olhado o teto, primeiro, para logo fechar os olhos e cerrar com força os lábios perante as memórias que lhe apertam ainda o peito. De olhos fechados recordará os planos, silenciosos, que fizera, a felicidade estampada no rosto de quem julga ter encontrado o amor para a vida, a ansiedade pelo olhar atento e o aconchego há tanto conhecido. Lembrar-se-á de se deixar ficar estendida na cama, observando a noite a cair lá fora, querendo (com muita força) que esta seja manchada de branco. Acredito que se lembre até da música a ser abafada pelo som da água a correr, de observar as gotas e o vapor a acumularem-se de encontro às portas de vidro, escondendo-o para além delas.
Depois, quando as faixas se esgotarem, pousará ao seu lado o telemóvel que antes agarrara com as duas mãos e deixar-se-á ficar a recordar as bandas sonoras da vida, as que mantém consigo, percebendo que as deveria colocar nas gavetas a que pertencem e mantê-las por lá, fechadas a 7 chaves.

*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 27 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

6 de janeiro de 2014

Erros*
Com o passar do tempo percebi que o meu maior erro foi ter-te deixado escorregar-me das mãos. Quando me pediste que te agarrasse, e eu disse já o fazer, menti. Não menti. Agarrava-te. Aí dentro. Segundo tu me dizias, disseste, e sentias. Mas não te agarrava por vontade. As coisas aconteceram. Tu apareceste, enfiada num conjunto infinito de palavras, que veio, direitinho, cá dentro. E cativaste-me. A menina doce. E confusa. Desequilibrada. E então escorregaste-me. Escorregaste para mim. Não devagarinho, depressa. Para esconderes o teu rosto contra mim, inspirares-me, abraçares-me. E para que te segurasse. E quando me dizias Não fujas e eu te perguntava Ficas comigo?, queria agarrar-te. Mas não queria que me agarrasses. A tua presença doce, e silenciosa, tinha o poder de me circunscrever àquele espaço, ao teu espaço. A ti. E se eu gostava…Mas assustava-me. As lembranças de experiências antigas que em dois dias me caíram em cima. E tu que me quiseste perguntar Porquê? mas nunca o fizeste. Eu não deixei. E da mesma forma que me escorregaste, que escorregaste para mim, não devagarinho, depressa, eu escorreguei para longe de ti. E não mais me lembrei. Deixei-te ir. E vi-te especada à minha espera. À espera do telefonema, da mensagem, do e-mail. E deixei-me ficar a ver-te. Como te vi, sentada de frente para mim, ou ao meu lado, com as nossas pernas entrelaçadas, e o teu sorriso doce, o teu nariz engraçado, os teus olhos brilhantes e os teus humm derretidos no meu pescoço. E as saudades que no princípio de tudo senti, foram-se. Esmaguei-as. Por medos. Por fantasmas do passado.
Hoje, sentei-me num banco de jardim, num banco do jardim a que me deverias ter levado um dia, não fosse eu ter-te escorregado. E fiquei a observar uma criança, de cabelos castanhos claros, com pequenas molas naturais nas pontas, que se elevavam dos ombros para cima.
- Nári, anda cá!
Nári…Nári…Nári…Nári! Nári…Nári e David. Os dois filhos que tu me disseste desejares. Nári. E então ela correu em direcção a ti. E só aí me apercebi da tua presença. Descontraída. Sentada com as pernas à chinês, como sempre gostaste. O cabelo preso à frente com um gancho. Um caderno sobre as pernas. Uma caneta que se passeava pelos teus dedos. A Nári levantou os olhos, e olhou-me de frente. Tu viraste-te. E estagnaste. Paralisaste. Nem um piscar de olhos. Depois levantaste-te. Adivinhei a tua respiração. E caminhaste, descalça, até a mim. O teu olhar pousado no chão. A relva verde. Os blocos de cimento. A Nári correu atrás de ti, e abraçou-te as pernas. E então olhaste-me, de frente, enquanto eu ganhava coragem para me levantar. E depois disseste, fria
- Olá. Há quanto tempo…Esta é a Nári, a minha filha.
E o teu olhar frio pousado em mim. Espadas. Vidros. Pedras. Castigos antigos que não me pudeste inflingir.
Hoje percebi que o meu maior erro foi ter-te deixado escorregar-me das mãos.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 6 de janeiro de 2014