terça-feira, 27 de maio de 2014

26 de maio de 2014

Mais (do que) uma carta.*
Estou aqui, sentada de frente para a rua, com a perna direita, cruzada sobre a esquerda, a baloiçar no ar – ou as pontas de ambos os pés pousadas ao de leve no chão e as pernas a agitarem-se, a agitarem-se. Estou aqui a segurar a lapiseira amarela entre os dedos e a procurar ignorar a vontade de segurar antes um cigarro. Estou aqui a tentar encontrar as palavras para te escrever nesta folha de linhas estreitas pousada sobre a mesa. E vou escrevendo estas enquanto não encontro as outras.
Esta carta é mais do que uma simples carta. Esta carta não chega bem a ser uma carta. Esta carta, estas palavras, existem apenas para acompanhar as outras, para acompanhar o maço de cartas que segue também neste envelope. Esta carta existe para que tudo te seja dito. TUDO! – ainda que depois desta estar selada me possam ocorrer uma série de outras palavras que gostaria também de te dirigir.
Quero com esta carta explicar-te o significado de todas as outras. Quero, com esta, tornar-te mais acessível o conteúdo de cada uma das outras. Quase que traduzir-tas para um tempo, para uma altura, em que vivias em mim – porque só à luz dessa realidade elas te poderão fazer um (ainda que ínfimo) sentido.
Continuo aqui sentada. Não me mexi daqui mas há já no ar um fumo ligeiro, um fumo que inspiro profundamente, um fumo que, espero, me ajudará a apaziguar esta ansiedade que se me acumula na garganta. Um fumo que eliminará este nó que se me formou na garganta quase ao ponto de me tirar o ar.
Porque o faço agora? O que me leva a reunir todos os escritos e a endereçar-tos tanto tempo passado? Porquê reavivar o que já foi, o que não volta mais, o que não mais quero que volte?
Porque preciso de to dizer. Preciso de te entregar todas as palavras para que saibas. Para que percebas agora o que antes te tentei dizer. Para que te pertençam – talvez na esperança de que, pertencendo-te, me abandonem de vez.
Preciso de to dizer para partilhar contigo tudo o que foi em mim – ainda que em ti pouco tenha acontecido. Preciso de to dizer, palavra por palavra, para que os teus olhos se pousem lá mais atrás, para que dês – ainda que seja tarde – atenção a tudo o que disse, a todas as pequenas (grandes) atenções, a todas as palavras que leste com o dedo a arrastar-se sobre o rato.

Podes guardá-las assim. Intocadas. Coloca-as numa caixa – numa daquelas que acumulamos nos sótãos de casa dos pais, numa daquelas em que não voltamos a mexer – não até que as coloquemos num caixote do lixo a meio de umas quaisquer mudanças. Coloca-as numa caixa e diz-me que não as recebeste, que não te chegaram, que os correios não funcionam neste país em que vivemos. Mas guarda-as em ti, por favor. Guarda-as em ti que em mim já não cabem mais. Já não pertencem aqui.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 26 de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

19 de maio de 2014

Palavras que me faltam*
Como dizer? Como dizer – assim, com palavras –  o que me corre nas veias, me palpita no peito, me borboleteia na barriga? Como dizer – dizer mesmo, palavra atrás de palavra – que o que tenho, que o que me percorre, me faz viver num misto?
É bom. É tão bom. É tranquilo. Tranquilo e intempestivo (e tudo assim, ao mesmo tempo).
É sorrir porque se tem. É recear perder – hoje, amanhã, noutro dia qualquer. É viver de sorriso posto. De sorrisos postos.
É abrir a cama à noite e ter mensagens à espera. É chegar depois do trabalho e ter bilhetes pousados na cómoda, juntamente com uma mensagem que só se lê depois – quando a vista está já enublada. É marcar cada momento importante – com palavras, com as que nos trouxeram até aqui. É colecionar bilhetes de comboio de viagens que são apenas nossas.
É descobrir que se pode falar sobre tudo – TUDO – sem que as vozes se elevem numa procura quase desesperada de razão. É amuar às vezes. É pedir mimo. É falar sobre o que perturba. É ver – ver com os olhos – que é possível que nada se perca, que se mantenha, que melhore.
É ser feliz – ainda que faltem as palavras para dizer o quanto. (Ainda que as palavras me façam falta).
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 19 de maio de 2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

5 de maio de 2014

esse medo (não) passa*
Parece que esse medo não vai passar nunca. Medo da(s) dor(es). Medo da morte. Medo da perda. Medo dos espaços vazios, dos corações vazios, dos tempos vazios. Medo dos corredores brancos, das paredes brancas de hospital, com cheiro de hospital.
À medida que o tempo passa, que as dores se afastam, que a morte se distancia – a morte que foi – assumem-se as dores como lembranças dos tempos que foram e não voltam mais. É como se as pessoas, as que foram e não mais voltaram -não mais voltarão – tivessem levado consigo as dores que parecia terem deixado em nós.
Deixamos de temer a própria sombra, deixamos de pensar numa qualquer desgraça que possa acontecer, que possa separar-nos dos nossos. E, no entanto, de repente, somos atirados de volta ao passado: os corredores brancos, as paredes brancas, o cheiro a hospital. Só nós não somos mais os mesmos. Estamos mais crescidos – mais crescidos e menos fortes. Os fantasmas do passado a correrem atrás da sombra. Os fantasmas do passado quase a apanharem-nos. Os fantasmas do passado a pisarem-nos os pés. E isso dói.
Doem-nos as dores de hoje juntamente com as de antes. Então aperta-se mais a mão pousada na cadeira ao nosso lado. Abraça-se o braço esticado na nossa direção como se isso nos pudesse salvar de um qualquer destino.
Parece que esse medo não vai passar nunca. O medo de passar por aqui uma vez mais. O medo de perder novamente – aquele género de perdas de que nunca se recupera. O medo de que haja uma qualquer partida do destino a atravessar-se no caminho agora que tudo segue bem, que tudo segue tranquilo. Uma vontade a crescer-me no peito. Uma vontade de gritar que agora não, que agora já chega, que não há direito de me abanar os alicerces novamente – não agora que estou segura aqui.
E eu achava que o medo já havia passado. Mas talvez, afinal, ele não passe nunca.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 5 de maio de 2014

28 de abril de 2014

Até ao próximo ciclo*
Primeiro o embate de se estar sozinha. Sozinha. So-zi-nha. O sofá torna-se o melhor amigo, as séries vão passando na televisão, episódio após episódio e passam-se dias – vários – sem que se saia de casa. A comida desce a custo e os quilos vão descendo depressa na balança – não um a um, antes aos pares, antes vários de uma só vez. Até que, passado algum tempo, passamos a sair – muito.
Ganha-se gosto aos horários próprios, às horas que não pertencem a mais ninguém. Olha-se mais para dentro, com uma maior profundidade. Vemo-nos melhor do que antes, melhor do que outros. Conquista-se um espaço próprio e a forma de vivermos bem com todo o tempo, todo o espaço, tudo o que é agora apenas nosso.
E depois cansamo-nos – pelo menos parcialmente. Gostamos de tudo quanto fazemos mas há momentos que gostaríamos de poder partilhar. Um bocadinho hoje, um bocadinho do amanhã que gostaríamos de viver com alguém ao lado, alguém com quem partilhar a felicidade que temos em nós, alguém com quem a fazer crescer.
A pessoa aparece. Primeiro as borboletas na barriga, os risos tontos, a descoberta constante do outro, de um “nós”, de se estar apaixonada. Mas às vezes o medo a bater-nos à porta, a calar os sorrisos, a travar os beijos, a criar barreiras. Tememos a dependência, tememos um possível embate de se voltar a ficar sozinha. Colocamos travões para evitar embates. Provocamos embates por tanto medo de repetir erros do passado.
Ciclos. São ciclos que provocam medo. Mas refletindo com calma – se se encontrar calma – a mudança é isso também: medo, conquista, estabilização. Até ao próximo ciclo. Há que aproveitar.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 28 de abril de 2014