sexta-feira, 3 de abril de 2015

2 de abril de 2015

Enquanto, de luzes apagadas, lhe cantávamos os parabéns. Foi assim, naquele bocadinho - que não sei ao certo quanto dura.
Reunimo-nos ano após ano, quase sempre os mesmos, seja dia de semana ou fim-de-semana. Reencontramo-nos, muitos de nós, apenas naquele dia. Comentamos:
- Aquele está mais envelhecido.
ou
- Estão umas mulherzinhas!
Reunimo-nos em diferentes zonas, diferentes grupos. Fala-se da crise, das obras nas Caldas, do Passos e do Portas e, agora, também do casamento. Vemo-lo crescer e ouvimos o seu crescimento ser comentado vezes sem conta por quem só anualmente o vê:
- Estás mesmo grande!
- Está um homenzinho...
As horas passam. Juntamo-nos todos em redor da mesa grande da sala  para cantar os parabéns. Apagamos as luzes e começamos:
- Parabéns a você...
E como se o tempo tivesse parado - ou como se apenas eu tivesse parado. É o seu décimo sétimo aniversário. Os pais estão ao seu lado. Os olhos dele, pousados nela, cheios de orgulho. 
E então vi-me de fora, com dezassete anos. Permiti-me ver-me de fora, olhar para mim naquela altura, há já quase dez anos.
Com dezassete anos ele ainda me olhava assim. Quando os fiz, ele já estava doente. Durante o meu décimo sétimo ano de vida vi-o desaparecer a passos largos, quilos e quilos de cada vez. Com dezassete anos amparei-o a ele, segurando as lágrimas e deixando que caíssem apenas cá dentro.
E se? E se lhe acontecesse o mesmo? Que estranho seria vê-lo ir-se, vê-la lidar com isso. Terá sido estranho para os que me viram lidar com a doença dele? Terá sido estranho ver-me com dezassete anos a procurar ser forte, a crescer à força?
Olhei em redor e quis dizer-lhe. Dizer algo como:
- Cat, eu só tinha a idade dela
e
- Ele também me olhava assim
Mas calei-me. Evitei constatar o óbvio. Pensei que fosse soar estranho. Dizer para quê? Para lembrar que aconteceu? Para que tivesse pena de mim?
Uma semana depois, sentada naquela cadeira que conheço bem, revi o mês. E alonguei-me aqui. Alonguei-me por entre lágrimas que trouxe do fundo de mim, com soluços e nó na garganta. Expliquei que não esqueço, que não esqueci. Provavelmente trarei sempre comigo a última vez em que o vi, as últimas palavras. Recordar-me-ei de o ter ajudado a tomar banho, dos soluços dele, do cheiro a sangue, a entranhas, a morte. De forma enevoada recordarei conversas, imagens. Eu e ela na paragem do autocarro e eu a dizer-lhe:
- O cheiro, o cheiro...
(e tremo ainda com a lembrança).
Alonguei-me a explicar a vergonha que sinto por isto, por esta pena de mim - que não suporto. Aprendi a dar-lhe outro nome: compaixão.  Tenho direito a ela, mereço-a e devo permitir-me senti-la sem vergonha. 
O tempo continua a passar. Sou trazida de volta pelas vozes em redor
- ...uma salva de palmas.