quinta-feira, 24 de setembro de 2015

24 de setembro de 2015

Quero dizer-lhe que chegou a altura. Ali, sentada naquele sofá, com uma perna dobrada por baixo da outra enquanto agarro uma das almofadas. Eu digo
- então...
mas o então veio molhado, veio escorregadio. Interrompido. O então veio com lágrimas e com riso. O 
- então 
sai abafado pelas lágrimas e pelos soluços que eu não sei se são choro, se gargalhada.
Pressiono um lábio contra o outro, tento perceber o que estou a sentir. Foi isso, também, que aprendi a fazer aqui. Ela olha-me, sentada na cadeira em frente a mim e sei que sabe o que quero dizer. 
Fomos falando sobre isto desde há já algum tempo - mas este tem sido um ano cheio de emoções para gerir e eu fui adiando, insegura.
Às vezes, quando tento pensar há já quanto tempo este momento faz parte da minha vida, tenho dificuldade. Estou confortável aqui, tenho estado. Não olho para o relógio ou para o calendário. Mas sei. São já três anos. Três anos nem sempre fáceis, três anos a crescer. Houve dias em que quis vir mais vezes, outros houve em que me zanguei por vir - mas vim, sempre.
Durante estes três anos chorei lágrimas que nem sabia ter para chorar. Chorei a morte, chorei o fim, chorei começos que nem chegaram a ser. Chorei as zangas. Chorei até as alegrias. Chorei de orgulho.
Comecei sempre com um
- está tudo bem...
que já nos faz rir e fui, invariavelmente, saltando de assunto em assunto, muitas vezes tentando fugir à reflexão. Só uns ouvidos atentos como estes me conseguiriam acompanhar.
Tive trabalhos de casa. Tive de estar atenta a mim própria. Aprendi a ouvir-me, a respeitar-me mais. Aprendi que sozinha também pode ser bom - e foi, enquanto foi. Aprendi que compaixão não é pena -  e que não faz mal que a tenhamos por nós próprios. Aprendi que é saudável zangarmo-nos quando assim tem de ser, que não é preciso fugir. Aprendi a chorar de alegria.
A pouco e pouco houve mudanças. Primeiro o cinzento cedeu e houve um rosa, cada vez mais forte, a crescer em meu redor. Aprendi a ver a cores e não apenas a cinza. Depois fui desligando os alertas, as sirenes. Aprendi a respirar. E a aceitar. Aprendi a confiar, a acreditar que o que acontece é sempre pelo melhor - mesmo quando, à partida, não o conseguimos ver.
O
- então...
sai-me por entre lágrimas. Lágrimas felizes. Lágrimas de vitória, lágrimas de quem chegou até aqui - e que chegou bem melhor do que saiu.
Digo
- estou crescida
e ela sorri. Sabemos que é verdade.

domingo, 13 de setembro de 2015

13 de setembro de 2015

Ele começou o dia a responder à pirraça da avó
- estou na esplanada em frente à praia de Sesimbra - disse ela
- e eu logo à tarde vou ao cinema com a tia Joana
(toma, toma)
Fomos buscá-lo. Vinha entusiasmado, falador como só ele sabe ser. Íamos ver a Ovelha Choné, um (quase) clássico.
Não havia ninguém na bilheteira e ainda tínhamos algum tempo.
- são três bilhetes para a Ovelha Choné, umas pipocas...
- doces - disse ele
- e uma água natural.
Pouso o cartão da Zon no balcão
- tem uma identificação? - pergunta o funcionário 
e enquanto vasculho a carteira à procura do meu cartão do cidadão ouço dizer
- mas é para esta sessão?
- sim... - respondemos a medo
- está esgotada.
Engulo em seco. Olho para ele, mais abaixo, vejo-o começar a contorcer o rosto, a apertar os lábios, a fazer beicinho
- só tenho dois lugares
Olhamo-nos em silêncio e ele, impecável, diz
- vão vocês, fico por aqui a dar uma volta
uma volta de uma hora e meia, penso.
- pode ser então - digo
- mas os dois lugares são separados - acrescenta o senhor.
Olho para ele e já não lhe vejo a cara. Enrolou o casaco, tapou a cara com ele e chora desalmadamente. Ele chora. Eu quero atirar-me para o chão a fazer o mesmo.
Levamo-lo para um canto, dou-lhe colinho, limpo-lhe as lágrimas enquanto penso que devia ter antecipado isto, enquanto me culpo por cada uma das suas lágrimas. Levo-o ao colo durante um bocado, enquanto procuro acalmá-lo.
- vamos durante a semana, a seguir ao colégio - digo eu
- não. não. não.
E eu quero fazer beicinho.
A mãe envia o horário de outro cinema.
- vamos lá?
- sim - diz, ainda sem sorrir.
E fomos. Desta vez chegámos bastante cedo. Desta vez a sala tinha ainda muitos lugares. 
Ainda fomos comprar os ténis que a mãe pediu. Assisti à melhor estratégia de sempre para experimentar sapatos novos: correr com eles. Calçou um ténis, pôs-se em posição de partida e atravessou o corredor da loja a correr. No regresso levantou o polegar. Prevenida, ainda tentei o número acima, na expectativa de que durassem mais. Utilizou a mesma estratégia. Voltou de polegar para baixo.
Quando o deixámos em casa ia feliz. Depois de eu sair abriu a porta e disse
- obrigado, tia.
Obrigada eu. Sempre.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

9 de setembro de 2015

Estou sentada a esta mesa mais uma vez, como em muitos finais de tarde pós trabalho. Sento-me aqui, instalo-me. Ocupo a mesa com o mocca branco com extra chocolate branco no interior - que coloca os meus níveis de açúcar nos píncaros - o iPhone, o iPad, um livro. Às vezes também com o caderno vermelho e o lápis que trago da minha sala de aula.
Ontem, a propósito d'O Principezinho que comecei a ler com os meus alunos, um dizia que tem de explicar sempre aos adultos porque mexe no iPad e vê TV ao mesmo tempo, porque joga PS3 (ou 4) e tem o iPad num qualquer jogo. E eu percebi que sou igual. Mas não o explico a ninguém.
Estou aqui sentada. Deixo-me estar. Ouço a música que me faz sorrir. Consulto o shazam. Confirmo suspeitas.
E decido ler-me. Ler-me lá longe, no Brasil, quando escrevia semanalmente para o Blog Priscila Nicolielo. Vou lendo texto após texto. E mordo o lábio, mantenho os olhos muito abertos, procuro não pestanejar. Porque às vezes, quando me leio, sou surpreendida pelo que sou enquanto escrevo, sou surpreendida pela forma como as palavras se ligam umas às outras e me fazem voltar atrás tanto tempo depois, como consigo ainda visualizar o exato local onde escrevi - muitos deles aqui, neste mesmo espaço - escutar as bandas sonoras, perceber a cadência com que escrevi, li e reli. Mantenho os olhos muito abertos procurando segurar as lágrimas. Porque me emociono, porque apesar deste ar de durona sou um coração mole, porque me emociono com notícias felizes e com notícias tristes, porque me deixo abalar, porque gosto um bocadinho de sentir que tremo. Porque às vezes, quando me leio no passado, não me reconheço. Não me reconheço mas encho-me de orgulho e penso
eu escrevi isto?
um
eu escrevi isto?
que deve soar como um
uau
Não me reconheço mas identifico-me com quem escreve. Imagino-me a chorar as mesmas lágrimas, a sofrer as mesmas dores, a descobrir a mesma vida feliz, a aprender a sorrir. Não me reconheço mas admiro a miúda que escreveu todas as palavras. E, sim, em alguns dias eu consigo ser essa pessoa. Espetacular.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

2 setembro de 2015

Há dez anos atrás, mais ou menos a esta hora - seria mais cedo, mais tarde? - disse-te as últimas palavras. Disse-te 
- gosto muito de ti.
E ainda bem que o fiz. Nos dias menos felizes em que me lembro de tudo isto tenho o consolo de te ter dito o importante.
Disse-te palavras que há muito não te dizia. Estive naquela idade em que evitava os abraços, as palavras meigas. E depois tu emagreceste (muito) e fugiste-nos.
Daqui a uma semana fará dez anos que entrei para a faculdade, para aquele curso que, quiseste crer, me verias terminar. Afinal, no dia em que saiu o resultado da candidatura, os teus olhos já não brilharam de orgulho em mim.
Em dez anos tanta coisa aconteceu. Estamos tão crescidas, em algumas coisas tão mudadas. Estamos umas mulherzinhas.
Faz amanhã dez anos que almoçámos - ou tentámos - coelho à caçador e fomos no peugeut vermelho até lá, sem saber que enquanto isso nos fugias. Faz amanhã dez anos que percorremos abraçadas, abraçados, o corredor do SO e que à pergunta de um enfermeiro
- então, piorou?
respondi 
- morreu.
Hoje faz dez anos sobre o último abraço, as últimas palavras. Amanhã faz dez anos que nos deixaste. Daqui a dois dias faz dez anos que te deixámos no único sítio em que, sabíamos, querias ficar para sempre.
Para sempre. 
Amanhã vou fingir que não passaram dez anos. Amanhã vou abrir a porta da sala e receber os mimos dos meus alunos. Porque amanhã, como hoje e sempre, devo viver da forma como tu gostarias de me ver viver. A sorrir.
Gosto muito de ti. Para sempre.