quinta-feira, 21 de novembro de 2013

16 de novembro de 2013

Espanto*
Ela continua a espantar-se com ele.
São os pequenos – e os grande – gestos, as palavras, e a naturalidade com que estas lhe saem, os mimos, os olhares, as conversas interessantes.
Ela continua a espantar-se com ele. Com ele e consigo mesma. Espanta-se ao encontrar-se a si mesma a pensar e a dizer em voz alta
- Tu és tão interessante
quando se percebe envolvida num qualquer tema de conversa, ou a ver-se a si própria a observá-lo em momentos do dia a dia, a segui-lo com os olhos e a dizer-lhe
- Não consigo tirar os olhos de ti
como se isso, que é tão bom, lhe afligisse um pouco o peito.
Espanta-se com tudo o que ele lhe dá. Todas as pequenas atenções. Todas as palavras. Todos os olhares.
Ela continua a espantar-se com ele e com o olhar que ele lhe dá. Um olhar que é querer – querer de tantas e tão variadas formas, todas elas tão completas. Ele continua a espantá-la de cada vez que a observa entre silêncios – assim como nas outras, em que a interrompe (a ela ou ao silêncio) “apenas” para lhe dizer
- Tu és tão bonita
ou
- Gosto tanto de ti.
E todos os olhares, todos os gestos, a surpreendem invariavelmente espantada. Espantada e feliz. Espantada também por estar feliz, por ele a fazer – tão – feliz.
E ela continua a espantar-se com ele. A espantar-se em cada uma das conversas em que se percebe saborosamente embrenhada nisto, em que se sente – e o sente – empenhada em que haja mais dias como este(s), em que, um de cada vez, estes se vão juntando num somatório de dias felizes.
Ela continua a espantar-se com ele – e a gostar.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de novembro de 2013.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

11 de novembro de 2013

(Pel)os velhinhos deste país*
No meio das revoltas da adolescência alguns de nós gritámos aos nossos pais — ou a quem estivesse a ouvir — que não pedíramos para nascer. Pois bem, acredito que estes não tenham pedido para morrer — pelo menos não antes de perceberem que iriam viver assim. Há muitas histórias para contar sobre eles.
 Há os que nunca descontaram e que vão recebendo um subsidiozeco — aquele com que devem pagar a renda, as contas da casa, a alimentação e, chegando, também a farmácia.
Há os outros, que o fizeram, mas aos quais o que o Estado por eles guardou não chega para pagar as contas certas — quanto mais as outras, incertas, que insistem em surgir. Talvez antes, antes dos cortes, lhes fosse possível cobrir as despesas. Talvez antes, quando os filhos ainda não tinham voltado para casa, quando os netos não comiam sempre à sua mesa, quando os transportes, a comida e a farmácia eram mais baratos, talvez nessa altura a reforma lhes chegasse. Talvez antes de a renda lhes ser aumentada. Talvez agora se remedeiem, comendo um pouco menos, aproveitando mais a luz natural, acumulando facturas na mesinha do telefone. Talvez assim vão vivendo — ainda que eu não saiba se a isto se pode bem chamar viver. Talvez estes sejam os que têm tanta vergonha que não deixam que a sua miséria seja vista por olhos alheios.
Há os que pagam as contas, uma após a outra, mas aos quais o corpo vai faltando já. São os vizinhos que vamos vendo envelhecer — primeiro devagar, depois depressa — que vamos conhecendo mais debilitados, menos cuidados, menos alimentados; de cujas casas vai saindo já um cheiro a sujidade. São os vizinhos, ainda casais, que não conseguem já viver sozinhos. Não conseguem mas fazem-no, que o que recebem não chega para pagar um lar — e a Segurança Social pouco lhes consegue assegurar.
E depois há os outros. Cruzamo-nos com eles no metro, quando de olhos poisados no chão e mão estendida, passam por nós. Pode também ser num semáforo, quando devagarinho se aproximam do vidro — ainda que chova — ou em ruas da zona nobre da cidade. Alguns de nós sentirão como que um murro no estômago e ficarão imóveis, como que em choque, com os olhos a adquirirem um brilho quase molhado. Outros olhá-los-ão com pena — e com uma revolta maior do que a pena. Muitos pensarão nas estatísticas e questionar-se-ão sobre o que estamos a fazer pelos velhinhos deste país — este que é já o sexto mais envelhecido do mundo. Outros tantos ficarão a pensar que envelhecer aqui é doloroso a duplicar. Ou a triplicar. Ou por aí fora.
 * Crónica publicada no Público P3 a 12 de novembro de 2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

7 de novembro de 2013

Bebeu para esquecer*
Não sei há quanto tempo é que ela fez disto vida. Sei que às vezes, quando a meio do dia desço para fumar um cigarro e nos cruzamos no corredor, troco o sorriso da praxe e sigo caminho – com ela no pensamento.
Os anos que nos distanciam chegam-me ainda para a observar com outros olhos. E os meus olhos preferiam não ver a tristeza que traz nos seus. São olhos sem brilho de quem já não se deixa impressionar. São olhos de quem, talvez, julga já ter visto tudo o que de bom havia para ver.
Há anos fez nascer duas crianças. Crianças que cresceram, que deixaram o ninho e que deixaram já hoje nascer outras crianças.
Há anos arranjou um marido. Ainda antes das crianças, arranjou-lhes um pai. Mas o pai, depois de o ser, depois de o ser há já anos, decidiu arranjar outra mulher. Não uma coisa séria, assumida. Antes uma das outras. Parece que ele procurava a atenção que ela não lhe dava, o elogio que se perdera no tempo. Parece que ele afinal gostava de mensagens capazes de causarem apertos e dilatações, de se arrastarem pela corrente sanguínea. Parece que ele gostava de uma safadeza ou outra – mas fora de casa, que com a mulher de casa parecia mal.
Ela, com o sexto sentido que todas as mulheres têm, um dia leu demais. Então ela soube. Soube logo mal leu uma mensagem ou outra. Soube tanto e tão bem – mas logo quis esquecer.
A cabeça na almofada não tinha descanso. As imagens que as mensagens trouxeram até si sempre ali, sempre a recordarem-na de que o homem que aturara durante grande parte da sua vida – a ressonar, a queixar-se do trabalho, a ter problemas de dilatação, a não lhe causar um friozinho na barriga – era afinal um sacana de primeira.
Então ela bebeu. Bebeu uma vez. Bebeu mais duas ou três. Bebeu para esquecer. Bebeu até o suficiente para se esquecer do que bebia.
A seguir quis beber para olhar em volta sem focar. Quis seguir a vida sem prestar atenção. Quis olhar em redor sem distinguir os limites das coisas.
Mas como tudo na vida tem um limite – e como nem todos são bons – também o dela chegou. Ou esquecia a bebida ou esquecia o que a pagava. E é por isso que agora se arrasta aqui. Com o que pagava a bebida mas sem a poder comprar, a vê-la passear-se à sua frente e a querer afastá-la, a querer aproximá-la – como quer também fazer com o sacana do marido com que continua a partilhar a cama.
Arrasta-se pelo corredor entre a cor mais neutra que quase permite a sua camuflagem e outras, mais vibrantes, que a ajudam a perceber que ainda está viva e – quase – de boa saúde.
Os olhos, esses, não esquecem o que viram e o seu não brilho sempre ali para nos lembrarem do que sabem.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de novembro de 2013.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

4 de novembro de 2013

Que seja diferente*
Para que desta vez seja diferente. É isso que te pede: que desta vez possa ser diferente.
Vezes houve em que só ela acreditou. Foi a única a fazê-lo, vezes e vezes sem conta. A partir antes do sinal de partida – e a fazê-lo sozinha. A dar tudo – e a receber tão pouco. A dizer o que lhe corria nas veias e a escutar como resposta silêncios cheios de significado(s).
Sabes que hoje faz diferente: procura não avançar antes do sinal de partida e, mesmo quando o faz, não quer ser a primeira a chegar à linha da meta; dá pela metade; diz (muito) menos do que há para dizer e procura não ler os silêncios cuja interpretação lhe pode falhar. As palavras dos outros assustam-na. Ergueu em seu redor autênticas barreiras protetoras – não para impedir incursões alheias, antes para prevenir a sua própria saída.
Sabes que as barreiras  – como as histórias do passado – lhe pesam em cada um dos seus passos. Ganhou medos. Procura proteger-se, por vezes em excesso, abraçando os joelhos e enrolando-se sobre si mesma. E ela precisa, precisa mesmo, que desta vez seja diferente. Mas ela nunca to diria e tu também sabes disso. Sabes que se zangou contigo faz tempo, quando tu lhe deste todos os motivos para que o fizesse. E, de todas as oportunidades que te deu, o que retirou foi a conclusão de que não as merecias mais.
Talvez a possas surpreender, agora que não o espera de ti, e deixares que desta vez possa ser diferente. Mostrar-lhe que vai ser diferente, que é diferente. Que, mesmo sem pedir por favor, desta vez lhe vais dar o que quer.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 4 de novembro de 2013.