terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

22 de fevereiro de 2014

Desligar o sistema*
Às vezes isto é tudo o que precisas: desligar.
Precisas de desligar o sistema. Precisas de desligar o teu sistema.
No final de um dia difícil, de um dia em que a pressão se transforma em lágrimas e a falta da nicotina te faz morder o lábio com mais força, talvez precises de desligar o sistema.
Entrar no carro e conduzir «ao sem destino», como se não houvesse sítio nenhum a que chegar, como se cada um dos quilómetros percorridos te fizesse caminhar para mais longe das responsabilidades. Como se as lágrimas a caírem rosto abaixo, enublando-te a vista, significassem de facto que a pressão se te aliviava no peito, nas têmporas – no corpo todo.
Talvez não vás tão longe. Talvez desças apenas a avenida em que trabalhas e te aproximes do rio. Estacionas o carro o mais perto possível da margem, antes da ciclovia, e chegas o banco para trás, afundando-te enquanto dizes em silêncio a ti própria que agora podes desfazer-te um bocadinho. Despes o profissionalismo, libertas-te do papel de adulto a que a profissão te obriga, e deixas-te chorar um bocadinho. Talvez seques depois as lágrimas e pegues num cigarro para fumares lá fora, sentada mesmo junto ao rio, com ele a ir e a vir aos teus pés. Não irás fumar dentro do carro – não mais, não agora que estes momentos são a exceção e não a regra, não agora que o carro se livrou do cheiro dos teus cigarros – mas apenas na rua, com o vento a agitar-te o cabelo enquanto te mantens sentada de forma contorcida a observar o fumo a afastar-se depressa de ti.
Ao fim de semana dirás que queres dormir a manhã toda. No entanto, o teu sistema, tão habituado aos comandos externos, iniciar-se-á pontualmente à mesma hora, obrigando-te a agitares-te na cama. Estás cansada. Estás cansada e a precisar de desligar o sistema. Mas as horas passam e continuas alerta, com todos os sentidos despertos para mais um dia que se inicia – e tu a sentires que nunca terminou o anterior.
Precisas de desligar o sistema. Precisas de desligar o teu sistema.
E então à tarde, depois do almoço e de ouvires que estás agitada, deitas-te no sofá para ver um episódio de uma série – esperando conseguir vê-lo até ao fim pela primeira vez esta semana. Aninhas-te, com a cabeça na almofada e as pernas em colo alheio, e começas realmente a vê-lo. Mas, mais uma vez, e provando que precisas de desligar o sistema, ele finalmente obedece-te e os teus olhos, esses, fecham-se finalmente. Dormes. Dormes um bocadinho. E depois um bocadinho maior. Acordas com a sensação de um reiniciar de sistema bem sucedido, com o pensamento fresco e os dedos soltos. E o texto que deverias fazer sai-te afinal em vinte e seis minutos.
Precisavas mesmo de desligar o sistema. Ainda bem que o fizeste.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 24 de fevereiro de 2014 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

14 de fevereiro de 2014

Coisas que gostaria de (lhe) dizer:*
Há uma série de coisas que gostaria de lhe dizer. Agora, enquanto a vejo avançar sozinha por entre as portas de embarque, há uma enorme quantidade de coisas que gostaria de lhe dizer.
Gostaria de a proteger do que está para vir. Queria salvaguardá-la, não deixar que se magoasse mais. Queria dizer-lhe para não se empenhar tanto, para não dar tanto de si. Hoje, que a observo à distância, que já pisei os mesmos passos que agora se propõe a pisar, gostaria de a poder alertar para o que aí vem.
Queria dizer-lhe, em primeiro lugar, para recuar no tempo: um, dois, três ou quatro meses até. Queria dizer-lhe que o fizesse para que o seu coração pudesse continuar a bater-lhe tranquilo no peito, para que o ar não lhe fugisse e as suas ideias não estivessem sempre tão longe. Gostaria de a alertar para os terríveis meses de tristeza, de saudade, a que agora irá dar início. Gostaria de a poder alertar para o sentimento de perda, ainda para mais injustificada, que durante muito tempo a dominará.
As certezas que tem são as certezas de que precisa: a certeza de se saber sempre acompanhada, ainda que à distância; a certeza de se saber compreendida, ainda que considerada exagerada; a certeza de poder ter certezas – que mais tarde, garantidamente, verá como tendo sido tão incertas.
Indo tarde, e por isso não conseguindo evitar o embarque, gostaria de lhe pedir que ouvisse, mas que ouvisse uma segunda vez e que fizesse uma leitura objetiva do que ouve em vez de a adequar ao que gostaria de ouvir. É certo que o discurso pouco claro que lhe é dirigido não lhe facilitará a tarefa, mas é também verdade que é sua obrigação – e de mais ninguém – filtrar o que até a si chega. Ocupará espaços que não lhe pertencerão e que não lhe foram, nunca, destinados. Existirá em si um sentimento de pertença, é verdade, mas posso garantir-lhe – agora, à distância – que será de pouca dura. Brevemente se sentirá excluída, quase mesmo eliminada. E passarão meses, vários, até que a perda se acomode num cantinho do coração e este lhe volte a bater calmamente no peito.
Gostaria de lhe dizer que tudo passa. Agora, aqui, um ano depois, gostaria de olhar para trás e de lhe dizer que descanse, que sinta a dor que houver para sentir, que daqui a um ano tudo estará bem e que a vida – a sua, a dos outros – terá dado uma grande, grande volta. Uma volta capaz de mudar vidas. Para (muito) melhor.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 17 de fevereiro de 2014 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

10 de fevereiro de 2014

Laços que ficam
Vai ser sempre assim. São laços que ficam para sempre.
Não importa se acordamos com o despertador ao domingo para percorrermos a cidade debaixo de chuva, com o país sob alerta vermelho e a ameaça de ventos muito fortes. Não importa se ficamos até tarde num dia que vai já extraordinariamente longo, se o cansaço nos pesa nos ombros, na cabeça, no humor. Importa, isso sim, que iniciámos o dia a sorrir, com um quentinho no coração, e o terminamos à gargalhada, com as memórias avivadas e a certeza de nos sabermos um dia crianças. Importa que te sabes sempre acompanhada pelos teus. Pelos de há muitos anos, pelos de há alguns, por outros mais recentes.
Importa que quando se sentam à volta da mesa de um dos mais movimentados locais lisboetas, por entre gargalhadas e conversas mais sérias, enquanto atualizam o estado da vida de cada um, continuam a ser exatamente os mesmos: os que ficam, os que nunca deixaram de estar, os que imaginas no teu futuro. Observas as diferenças – as físicas e as outras – e valorizas cada uma das mudanças que os viste empreender, cheios de coragem e de um medo da mudança que parecem não ter. Acreditas que poderias até ficar só a observá-los, a vê-los comunicarem uns com os outros naquele jeito especial de cada um, naquelas suas formas tão diferentes de serem – mas que se completam e te completam tão bem. Importa que muito na tua vida mudou, importa que houve pessoas a deixarem-na mas que tu ficaste, que eles ficaram, que continuam todos no teu caminho. Importa que quando se levantam e seguem cada um a sua direção, te sentas no carro e dizes em voz alta
- Gosto mesmo deles.
Importa que em ocasiões festivas se cruzam, se observam atentamente e trocam abraços que dizem tanto. Importa que te conhecem como poucas pessoas, que te topam a léguas, que se preocupam contigo. Importa que te viram crescer – e continuar, ainda assim, a ser tão pequenina. Importa que detêm memórias capazes de complementarem as tuas e que têm a capacidade, que vais sentindo como rara, de te avivar as lembranças de quem já não está – e tu gostarias que estivesse. Importa que partilharam dores comuns de uma forma muito própria. Não importa se apontam os teus defeitos mais depressa do que te identificam as qualidades, importa sim que o fazem para te alertar, para que não te esqueças, para que não afastes por isso de ti quem queres que fique. Conhecem as dinâmicas familiares e têm a capacidade de te identificar como amorosa, mas complicada, reconhecendo-te traços que não perderás nunca – talvez porque com eles te mantenhas confortável e garantas a dose de mimo que de outra forma te poderia escapar. Importa que procurem preencher, como que com pequenos remendos, o espaço deixado vago por quem partiu e não mais voltará. Deixas-te ficar a observá-los enquanto comunicam, enquanto se riem à gargalhada e fazem reconstituições de situações passadas e questionas-te silenciosamente como seria? – e depois calas as questões e rendes-te ao como é das coisas que são e te fazem feliz.
E sabes, cheia de certezas que raramente te dominam, que alguns laços – como estes – ficarão para sempre. Será sempre assim.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

6 de fevereiro de 2014

Como se não te chegasse o dia de trabalho. As crianças, os pais das crianças, os problemas com o servidor,  as reuniões que se prolongam. Como se não te chegasse o cansaço das noites pouco dormidas, o peso da responsabilidade.
Sais tarde e a precisar de uma sesta, a precisar de um bocadinho para ti no sofá. Mas é já tarde demais. Enfias-te no carro e abres a porta alheia com a chave há muito confiada - como se faz sempre com os que são nossos. Deixas-te ficar a observá-lo enquanto, com os olhos muito abertos,  vê os desenhos animados do final de tarde. Fazem escavações arqueológicas em busca do T-Rex, travam batalhas do jogo do galo, molham-se com a água do banho que lhe devias dar. Quando se sentam todos à volta da mesa não consegues evitar reagir a uma provocação e quando dás por ti a tua voz está já a elevar-se demasiado alto, num tom demasiado agressivo, erguendo defesas que entre vocês não seriam necessárias. Incrédula, ouves o convite para sair. E sais. Sais mesmo. Com bater de portas, juras internas de não mais voltar e algo a molhar-te a cara, algo a enublar-te a vista. Sentas-te ao volante e a única coisa em que consegues pensar é no cigarro que precisas de fumar - nisso e na certeza de que não irás voltar. Amaldiçoas o dia em que, sem saber porquê, decidiste deixar de fumar - ou "reduzir,  apenas reduzir". Abres e fechas a boca como se inalasses e exalasses o fumo. Pegas no telefone à procura de um aconchego mas há algo em ti a querer empurrá-lo para longe. Longe. Mais ainda quando a preocupação se mistura com uma atividade contrastante e comentada - repetidamente comentada.
Procuras resolver um problema mas há outro a crescer-te no peito. Um problema com cabeça,  tronco e membros que sentes invadir-te a vida,  destruindo o sítio tranquilo e seguro a que julgavas ter chegado.
Pões a tocar aquela música - aquela, banda sonora de tantos momentos - e procuras deitar pela ponta dos dedos toda a ansiedade. Sentes o corpo - e o coração - a contrair-se sobre si mesmo, a fechar-se para o exterior, mantendo tudo o resto para além dele. Cerras os lábios com força, como ainda há poucos dias sentiras necessidade de fazer, e abres muito os olhos para que as tuas pestanas não empurrem as gotinhas pequeninas que se empoleiram no cantio dos teus olhos. E queres ferir. Atacar para ferir - não matar, magoar apenas um bocadinho. Sentes a respiração a alterar-se pelo esforço do que procuras não dizer, pelas acusações sentidas que tentas guardar em ti. E questionas-te, baixinho, até quando te manterás nas graças.
E agora que te encontras tão imensamente desapontada - agora que sabes ter perdido qualquer pinga de racionalidade - queres pedir mais tempo para ti, fechar novamente as janelas e as portas que antes abriras de par em par, eliminar de ti qualquer quentinho no peito,  apagar o registo de planos e os desejos que ias já tomando como teus. Queres dizer o que tantas outras vezes quiseste dizer- Não me assustesOu- Não faças com que te queira fugir.
Porque talvez agora o queiras um bocadinho.