quinta-feira, 31 de outubro de 2013

31 de outubro de 2013

Estás sentado à secretária há já várias horas. Contrariamente ao que acontece noutras alturas do dia, os teus olhos observam repetidamente o canto inferior direito do monitor onde os minutos, esses, se vão arrastando, um após o outro.
Já perdeste a conta às palavras. Um dia após o outro. Uma após a outra. São palavras que vão e que vêm, que te agitam, que a aproximam. E, no entanto, são palavras apenas. Não importa a atenção que dedicam a cada uma delas, nem mesmo a intenção com que cada uma é escrita. A verdade é que, com o passar dos dias, cada uma se vai revelando mais pequenina, de menor sentido, incapaz de reproduzir a real amplitude do que há a dizer.
Sentado à secretária, os teus olhos acabam por pousar no telefone ao teu lado. Sabes que se marcares os nove dígitos do seu número haverá apenas um "Privado" a fazer-se anunciar do outro lado. E, se fechares os olhos, talvez consigas mesmo imaginá-la a observar o ecrã e a questionar-se silenciosamente. Talvez ela não perceba - pelo menos não logo. Talvez o seu indicador direito hesite entre o atender e o ignorar.
A tua mão pousa sobre o auscultador, o teu indicador pressiona cada um dos nove algarismos e a tua respiração, essa, dispara. Queres pousar o telefone. Não queres pousar o telefone. Não sabes se queres ou não pousar o telefone. E enquanto as tuas ideias oscilam, enquanto procuras perceber o que queres ou não, a sua voz ouve-se do outro lado. Há um
- Estou
que não sabes dizer se soa a interrogação ou a exclamação. Talvez haja ali alguma exasperação. Há talvez a frieza que ela anunciara já. E há um silêncio de ambos os lados. O teu silêncio de quem não sabe o que está a fazer, nem o que esperava com isto. E há o silêncio dela do outro lado, breves segundos apenas durante os quais se encosta à ombreira da porta e as ideias lhe passam depressa. E quando a sua boca se abre para o segundo
- Estou
talvez ela já tenha percebido. Talvez tenha esperado até ouvir algo desse lado. Um silêncio que fosse em que pudesse respirar um pouco, em que o seu 
- Estou
pudesse soar a
- Estou (aqui)
e não apenas a um
- Estou.
Mas o que ela ouviu foi a chamada a desligar-se. Nem a chamada a ser desligada, apenas o pós chamada desligada, quando o sinal de chamada perdida se fez ouvir.
Ela soube. Soube (quase) desde o primeiro segundo silencioso. Soube até que depois de pousares o auscultador a tua mão não o conseguiu largar logo - como se assim te pudesses manter em contacto. Ela quis dizer-te que soube. Mas pensou depois que não seria necessário.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

25 de outubro de 2013

Paz.*

Estou em paz contigo.
Demorei a chegar aqui mas agora que aqui estou percebo o quanto me sabe bem.
Estou em paz contigo e com o que foi. Em paz com os sorrisos que não consegui ter, com os copos que não bebi, com os livros que não li. Em paz até com as lágrimas que devia ter chorado e não chorei. Estou em paz com as noites em branco de conversas sem fim - aquelas a que não raras vezes perdi o rumo pouco tempo após o seu início. Perdoei-te já por todas as vezes em que me tiraste da cama comigo já longe, já distante, para me arrastares para perto e me fazeres ouvir-te. Quero dizer-te que tentei. Tentei mesmo. Tentei ouvir-te com todos os meus ouvidos - mas, ainda assim, tudo o que se ouvia cá dentro eram queixumes de
- estou tão cansada
ou
- não sei que mais lhe posso dizer
ou
- já não sei do que falamos agora
ou ainda um
 - não aguento mais isto
que nunca fui capaz de te dizer em voz alta - mas que, hoje percebo, me corria pelas veias há já muito tempo.
Eu não aguentava. Por isso o meu corpo se desligou para ti - primeiro um dia, depois outro, uma semana e, podendo, mais até. Por isso o meu corpo se desligava demasiado cedo. Ele queria fechar-me dentro de si, queria isolar-me num sítio seguro. Queria proteger-me das agressões externas da vida que corria. E disso não te culpo a ti.
Não te culpo, não mais. Estávamos danificados, cada um à sua maneira. E danificámo-nos mais, danificámo-nos muito.
Estou em paz contigo agora que percebo isso. Espero que, um dia, a paz te chegue para que me entendas também.
Estou em paz contigo. Às vezes não estou ainda é em paz comigo e com a inércia que me dominou.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 28 de outubro de 2013.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

22 de outubro de 2013

Mais uma vez, o problema não és tu, sou eu.
Eu sei que esta frase soa a vazio, a frase feita. Perdi a conta às vezes em que a ouvi dirigida a mim, às vezes em que a ouvi no ecrã da televisão - muitas vezes associada a gargalhadas de fundo, como se de verdade nada pudesse ter. Mas tem. Pode ter.
O problema sou eu. O problema sou eu e o perímetro delimitado no chão em meu redor que ora está cheio (demais), ora está vazio (em demasia). Habituada que estou a ocupá-lo sozinha, as flutuações agitam-me a existência, desarrumam-me a casa. E, na minha casa, tudo tem de ter a sua ordem, sempre a mesma - que a sofrer mais vale que seja de enjoo.
O problema não é tu dares demais ou de menos. O problema é eu nem sempre saber se quero mais, se quero menos. O problema é eu gostar de dar - mais e mais - mas achar sempre que o deveria fazer menos. O problema é eu sentir as palavras a subirem-me à garganta mas empurrá-las para baixo engolindo em seco. 
O problema não és tu, sou eu e a minha constante procura pelo equilíbrio, pelo ponto exato a meio caminho entre o que é demais e o que é de menos. E talvez esse ponto não exista, talvez ele próprio ande à procura da localização exata e eu ande apenas atrás dele - para a frente, para trás. 
O problema sou eu. Sou eu a não querer colocar-me numa posição pouco segura, numa posição em que as inseguranças se me aproximem da pele, da ponta dos dedos, da boca, dos ouvidos. Sou eu a não querer sentir a falta e, sentindo, querer fugir.
O problema não és tu, sou eu. O problema é eu achar que devo fugir de tudo - menos de mim. O problema é eu antecipar os problemas - aqui, ali, em todo o lado. E, fugindo deles, fugir de ti.

17 de outubro de 2013

Família é mesmo assim*

Família é assim mesmo. Cada um com a sua. E ai de quem, de fora, fizer comentários. Se é para elogiar vamos a isso, se é para criticar escusa de vir. Família é assim mesmo e cada um com a sua.
Sentados à mesa montamos um arraial. Os braços apertados uns contra os outros, as cadeiras a empernarem com os bancos – e vice-versa – e as vozes – primeiro poucas, primeiro baixas – a subir, subir, até formarem um indistinto aglomerado de timbres. Por vezes, quando a cabeça está mais cansada, o aglomerado soa a um barulho constante e ininterrupto capaz de provocar um esgotamento. E, de repente, queremos abandonar o lugar à mesa ou levantar mais a voz – mais e mais – até que nos consigamos fazer ouvir para tão simplesmente pedirmos um pouco de silêncio.
A ralhar ou a rir. A comunicar. Cada família à sua maneira. Antes a ralhar que a calar, dia após dia. A ralhar vezes demais. A rir. A gritar. A espernear. Um bocadinho de cada. De extremos. A comunicar muito. A comunicar tudo. A não comunicar nada. A baixar a guarda e a perder o filtro.
Cada família com os seus hábitos – e estes, afinal mutantes, a serem alterados devagarinho e muitas vezes a contragosto de alguns. Primeiro tudo, depois um pouco menos – que família é um grupo mas cabe lá muita gente.
Família é assim mesmo. Nós não a escolhemos mas optamos dia após dia. Ficar. Dar. Receber. Ou não.
Há umas que dão demais, outras que dão de menos. Há os que nunca se satisfazem, os que não querem dar e há os outros: os que dão por inteiro, ainda que pouco ou nada recebendo.
Há famílias em que a dor de uns é a dor de todos, outras há em que a dor de um não dói a mais ninguém. Há os que vivem a felicidade alheia e os outros, que convivem mal com ela.
Família é assim mesmo e cada um com a sua. Umas vezes mais. Outras vezes menos. Nem sempre com muita vontade – ou à vontade. Mas cada um com a sua.
Não há melhores, não há piores (há, mas são raros os casos). Não há quem possa julgar – não de fora. Porque família é mesmo assim – ou devo dizer assins?
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 21 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

17 de outubro de 2013

Por vezes sentes-te destinada ao fracasso. Talvez pelo hábito de algumas coisas na tua vida fracassarem realmente - com frequência.
Habituas-te a este sobe  e desce - que sentes sempre não subir o suficiente para compensar a descida. Habituaste-te a que a uma subida, por mais pequena que seja, se segue sempre uma descida. Habituaste-te tanto que já a esperas. Mais: muitas vezes não só a esperas como até a antecipas.
Antecipas as descidas com pensamentos e atos de autossabotagem. Como se, sabotando-te a ti própria, não permitisses que a vida o fizesse por ti. Então és tu que o fazes por ela, esperando que assim te doa menos - que a surpresa também dói.
Encontras-te entre sorrisos. A vida corre calma, com o constante ir e vir das coisas que se querem assim. Dormes menos para viveres mais, para aproveitares melhor. E, de repente, de um momento - tão pequeno - para o outro - logo ali ao lado - quando os teus olhos se reabrem após um ligeiro pestanejar, apercebes-te de que o que tens é bom demais. Não sabes o que fazer. Não sabes o que dizer e, no entanto, a tua boca quer abrir e fechar-se sem parar, como se houvesse demasiado conteúdo acumulado no peito. Os teus olhos querem ver mais, acumular mais, mas o medo cresce em ti. Se estás a subir em breve estarás a descer. Se é para descer talvez te devas colocar já a caminho.
Na verdade, agora que aqui estás perdeste a certeza de querer ficar. Talvez não sejas capaz - o que se faz quando tudo corre bem? Talvez não mereças tudo isto - talvez as descidas sejam apenas a vida a lembrar-te que assim é. Ou talvez estejas apenas assustada - e por isso queiras fugir.
Fá-lo, se achares que deves, mas não o faças para sempre. Em alguma altura terás de perceber que a autossabotagem é que te leva ao fracasso.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

14 de outubro de 2013

Crescer. Um dia. Eu vou.*

Um dia vou crescer. Eu sei que tu me olharás sempre com os mesmos olhos e que verás em mim sempre esta menina. Mas quero dizer-te, quero prevenir-te para o facto de que, um dia, eu vou crescer e esta menina que ainda pede colo o vai deixar de pedir.
Passarão anos em que revirarei os olhos em todas as tuas conversas, em que verás mais vezes as minhas costas do que o meu rosto, em que a minha voz não será ouvida – ou será, mas alto de mais.
Quero dizer-te que o tempo para me dares mimo é agora – porque depois será tarde de mais. Agora é a altura de me passares a mão pelo cabelo, a altura de me chegares mais a ti. É agora que deves dizer o quanto te orgulhas de mim – dizer alto e bom som, dizer muitas vezes – porque depois será já demasiado tarde. Se tiveres oportunidade escreve. Escreve para que fique o registo, para que, se a minha memória me falhar enquanto cresço, exista a prova a recordar-me que em tempos te orgulhaste de mim. Hoje não me parece importante. Há sempre sorrisos em mim e ainda penso pouco se me apoias ou não, mas ao observar os que me rodeiam algo me leva a pensar que um dia a certeza de me saber apoiada poderá fazer a diferença.
Estou a alertar-te também para o facto de que vou fugir ao contacto físico. Quando quiseres caminhar lado a lado comigo e pousares-me a mão no ombro, lembra-te de que te alertei. Eu vou fugir, sacudir os ombros até que a tua mão caia. E, quase que aposto, quando crescer vou lamentar esses momentos. Mas acredito também que para crescer vou ter de sair de debaixo da tua asa, sair o suficiente para que as minhas cresçam.
Deixa-me dizer-te ainda que existirão sempre em mim caraterísticas desta menina. Mas quero pedir-te, também, que não chames a atenção sobre elas, que não as refiras. Aceito que as observes, que te sentes num qualquer canto a observares-me as maneiras e a forma, mas que o faças em silêncio e com um rosto inexpressivo. Conto contigo para me veres crescer. Conto contigo também para me veres ser sempre um pouco menina. Conto contigo para me dizeres, ainda que em silêncio, que os meus erros não foram suficientes para defraudar as expectativas.
Sim, um dia eu vou crescer. Vou crescer em altura, em largura, em profundidade. Mas os meus olhos continuarão sempre a ver o mundo com curiosidade, a absorve-lo, a ouvi-lo atentamente. E a minha boca continuará a estar perto do coração. E as minhas lágrimas, essas, continuarão sempre fáceis – porque estou triste, porque estou feliz. É que a vida, as pessoas, continuarão a tocar-me.
Lembra-te, eu vou crescer. Um dia. Talvez ainda não hoje. Talvez não amanhã. Um dia. Pouco a pouco. Um bocadinho de cada vez.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 14 de outubro de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

13 de outubro de 2013

Ela quer que penses que não vai voltar, que desta é que é. Quer fazer-te acreditar que já cá não está quem para sempre disse ficar.
A segurar as lágrimas com força e com o corpo a movimentar-te bruscamente, tira da vista tudo o que a pode lembrar. Memória atrás de memória agora colocadas para além da porta de um qualquer armário em que quase nunca mexe. Fia-se no ditado que cedo ouviu, na crença de que "longe da vista, longe do coração". Não se fia, mas quer fiar-se, porque há alturas em que crenças como esta parecem poder ajudar.
Fecha-se em silêncios que espera levar-te diretamente ao coração. À consciência. Espera que te perguntes porquê. Espera que o silêncio te rodeie como que um ruído constante, quase ensurdecedor.
Move-me pé ante pé, procurando não deixar rasto. Um pé, depois o outro, num movimento consciente e controlado, evitando rotas do antes, evitando memórias do que foi. Preenche os dias com novos movimentos, novos espaços, novos sons. Preenche-se, preenchendo o espaço em redor - mas procurando, sempre, que acredites que desta é de vez, que preenchidos todos os espaços nada sobrará para ti.
E talvez acredite que à noite, agora que os dias arrefeceram e os lençóis voltaram a ficar frios, te deites nessa cama para dois e o espaço que te rodeia seja grande demais. E que te decidas a interromper o silêncio, a encurtar a distância, a pedir-lhe que volte. E que ela seja crescida o suficiente para te dizer que desta é que foi - e que não vai voltar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

9 de setembro de 2013

Para que os ses não te apanhem*

Se.
Se a vida não tivesse dado estas voltas. Ou se a vida as tivesse dado antes. Se tu tivesses percebido antes ou se tu simplesmente nunca te apercebesses. Se tivesses agido na altura. Se agisses agora. Se não agires nunca. Se não tivesses agido nunca. Se te tivesses declarado ou se não tivesses deixado sair o que trazias no peito.Se o medo te tivesse bloqueado ou se não te tivesses deixado paralisar pelo medo. Se não tivesses colocado a mão no fogo por ele. Se tivesses ariscado mais. Se. Se. Se.
Na correria do dia a dia não há tempo para ses. Na correria não há tempo para mas. Não há tempo para ter tempo. Ponto. Vais depressa, mais depressa, sem parar. 
Pausa. Pausas com olhos no passado. Pausas em que os pés se querem mexer em sentido inverso, em que queres andar para trás no tempo e optar por outros caminhos. Pausas em que querias que a tua vida fosse um livro (que é!) daqueles em que podes escolher diferentes finais - e em que, quando um não te agrada, podes simplesmente retomar a história a partir do ponto anterior sem que as personagens se tenham movimentado no tempo, no espaço.
Pausa. Pausas para leres as palavras de antes, para olhares os rostos para sempre guardados em fotografias. Pausas para olhares para dentro, para olhares para ti. 
Pausas em que te arrependes das opções que fizeste - e das outras, que não fizeste. Pausas em que, invariavelmente, choras o passado, lamentas o presente e temes o futuro. E te afundas em hipotéticas possibilidades.
Depois aceleras. Mais depressa. Vai depressa. Vai depressa que o tempo voa. Vai depressa para que os ses não te apanhem. Vai depressa para o que os teus olhos não os foquem. Para que os teus ouvidos não os ouçam. Vai depressa mas lembra-te de que se não fossem estes seriam outros. Ses haverá sempre. Não te deixes é vencer pelo arrependimento.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de outubro de 2013

terça-feira, 8 de outubro de 2013

8 de outubro de 2013

Promete-me que vais ter cuidado. Com a saúde não se brinca. Por isso, promete-me que vais cuidar de ti.
Há quem viva com a constante sensação de "corda na garganta", sempre à espera do fim. Não à espera, com medo. E não com medo do fim: antes com medo de tudo o que há antes do fim. E há quem, como tu, finja não ver o que está bem à sua frente. O 80 e o 8, sempre tão distantes. Promete-me que vais encontrar o equilíbrio, que não vais andar de extremo em extremo, que vais estar atenta aos sinais e que, deparando-te com algum, não o vais ignorar.
Histórias destas há muitas. Toda a gente conhece alguém que as viveu. Toda a gente conhece uma ou várias pessoas que as protagonizaram e outras, que as viveram em papéis mais secundários. Eu sei que isso te assusta e que por isso finges não ver. Sei que perante histórias destas, mais ou menos próximas, pessoas em muito semelhantes adotam atitudes díspares. Mas, por favor, não as ignores. 
Não te quero sentada em salas de espera de paredes brancas de quinze em quinze dias, nem mesmo de mês a mês. Mas promete-me que ao menos os teus dedos te vão percorrer o corpo, pedacinho a pedacinho, procurando (não encontrar) sinais de preocupação. E, bem, lembra-te que as cadeiras das salas de espera existem para serem ocupadas, não apenas para preencherem o espaço vazio.
Nesse país onde vives os exames médicos, os exames complementares, foram muitas vezes realizados em excesso. Médicos houve que foram acusados de excesso de zelo. Agora, agora que os cofres estão (mais) vazios, alguns destes exames estão a ser racionados. Mas tu sempre foste boa a reclamar. Então reclama, exige o que é teu por direito. E se há sinais, então faz com que os explorem. Não permitas que as pistas sejam ignoradas por questões orçamentais.
Promete-me que vais ter cuidado. Mas promete-me que o teu cuidado não vai ser tido com dores de estômago e cigarros fumados um atrás do outro. Tem um cuidado preventivo. Um cuidado (quase) despreocupado. Promete-me que o teu cuidado vai ser rotineiro. E se tiveres de te sentar em salas de espera de paredes brancas, daquelas que trazem ao presente os fantasmas do passado, fá-lo a recordar todas as histórias de final feliz. Não o faças a lamentar a minha.
Do que tenho observado, é o cuidado que marca muitas vezes a diferença. Por isso vive num 36, que do 8 e do 80 não reza a história. E lembra-te também de que as grandes batalhas só são travadas por grandes soldados. Não te esqueças do quão combativa consegues ser.

domingo, 6 de outubro de 2013

5 de outubro de 2013

Tinha um gato preto de olho em mim.
Todo este tempo, tinha um gato preto de olho em mim. E eu olhava-o com receio, não deixando nunca que o meu olhar se cruzasse com o seu.  
Vivia com medo. "Gato preto é azar", sempre se disse. Eu ia para aqui, ia para acolá, e o gato preto sempre comigo, olhando-me seriamente do topo do seu corpo esguio.
Não sorria - porque o gato estava a ver. Não bebia: o gato estava a ver. O meu corpo movia-se mas sempre (sempre) contraído. Não queria afugentar o gato. Se gato preto só por si é azar, o que seria um gato preto afugentado? Quem sabe se não se tentaria vingar?
Olhava o gato e não percebia o que queria de mim - logo de mim, que nem gosto (muito) de gatos.
À força de o ter sempre comigo - foram dias, tantos que se transformaram em anos - fui ganhando confiança. "Gato preto é azar" mas azares não os houve. Houve a vida, ela própria, e dela nunca ninguém disse só maravilhas. E o gato preto, de olho em mim, não parecia querer agir. Então o medo foi dando lugar à confiança, e à medida que os dias e os anos passavam, a sua presença foi sendo menos notada. Um dia olhei-o nos olhos. Olhei-o nos olhos e estiquei-lhe a mão. E então o gato preto (que "é azar") veio andando, roçando-se ao de leve nas minhas pernas esticadas, cabeceando-me a mão que eu pousara já no colo.
Tinha um gato preto de olho em mim todo este tempo que procurava só um pouco de atenção.

* Texto escrito para o "Escreva um post sobre", desafio semanal do blog A Vida em Posts

sábado, 5 de outubro de 2013

4 de outubro de 2013

Há algo na forma como ela caminha a seu lado que mostra o quão diferente é a sua perspetiva sobre o que têm.
Vai à frente, abrindo caminho, abrandando o passo apenas para se dirigir a ele mas não - nunca - para o ouvir. Os seus braços, esticados ao longo do corpo, acompanham-na sem parecerem precisar de companhia. Não importa se ele apressa o passo, se os braços dele se movimentam mais para a frente, mais para o lado, na tentativa de se aproximarem dos dela. Ela não parece interessada na proximidade.
Quando se aproximam da estrada, dos semáforos, ele coloca-se à esquerda, barrando-lhe a visão. E então ela, já com um pé na estrada, acaba por recuar. Ele procura protegê-la. Ela, tão autónoma, acaba por ceder. Ele levanta a mão em direção ao seu ombro, procurando abraçá-la com um braço só. E ao observá-la daqui, um pouco ao longe, quase consigo vê-la a fincar os pés no chão com mais força, pedindo-lhes ajuda para manter o corpo firmemente longe do dele.
Ele sorri, os olhos dele, sorriem, e a sua mão procura colocar no lugar os caracóis que o vento do final do dia insistentemente agita no ar. Ela sorri ao de leve e talvez o seu rosto acabe por se acomodar de encontro à mão quente dele. Talvez o corpo dela esteja a tentar aproximar-se do dele afinal de contas. Mas talvez o objeto com rodas que ele vem arrastando rua fora a esteja a impedir.
E de repente percebo. Percebo porque é que ela insiste em caminhar mais à frente, porque é que ela - e os braços dela - não procuram a proximidade, antes fugindo. Há um perímetro traçado no chão em seu redor. Não importa para onde vá: ali ninguém entra, dali ninguém devia sair. Ele saiu. Ela fechou o seu espaço e habituou-se a ele. É constante. Vazio às vezes, mas constante.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

2 de outubro de 2013

Histórias de (des)encantar*

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O Amor
Era uma vez um menino chamado Francisco e uma menina chamada Josefina. Eles estavam apaixonados e eles não queriam dizer porque pensavam que o outro não gostava dela então a Josefina enviou uma carta ao Francisco mas o Francisco não via o correio, eram os pais dele e eles deitaram fora a carta e depois o Francisco foi deitar uma coisa ao lixo e viu a carta e depois eles casaram.

Talvez alguém te devesse dizer que o amor nem sempre flui assim tão bem.

De cada vez que abro os vossos cadernos e me deparo com textos assim há algo que se me aperta no peito. As vossas histórias de príncipes e princesas - e a forma como crêem nelas - lembram-me a menina que fui, a menina que acreditava.
Todas nós crescemos rodeadas de histórias assim: A Bela Adormecida, A Cinderela, A Branca de neve e outras, tantas outras, em que a donzela em apuros acaba salva por um príncipe cheio de encantos. Ele é o cavalheiro que a toma em seus braços e que com um simples beijo a resgata de uma qualquer situação difícil, seguindo-se o tão conhecido "e viveram felizes para sempre". Resultado: crescemos e vivemos à espera do príncipe, como se a vida não chegasse sequer a ser vida sem esse outro elemento.
Há sobre estas histórias muito a dizer e nem sei por onde começar. No essencial gostaria apenas de vos proteger da deceção que sempre surge aquando do confronto com a realidade.
Talvez não vos devêssemos alimentar a histórias de encantar. Não se vocês vão crescer à espera de serem protagonistas de uma tão bela assim, não se vocês vão crescer a ver em cada rapaz um príncipe - e a descobrirem, uma vez após a outra, que essa é uma espécie tão rara que poderão nunca a encontrar.
Depois, a fórmula "príncipe salva princesa" terá tantas vezes de ser invertida que é importante, muito importante, que não fiquem presas à primeira. De outra forma, correrão o risco de ver o príncipe a ser arrastado para as trevas ou a ser salvo por uma princesa mais perspicaz. Transmitam também àqueles com que se cruzarem de que não dependem de príncipe algum para que a vossa vida valha a pena - mas não o digam apenas: vivam em conformidade.
Sobre o final tantas vezes repetido do "viveram felizes para sempre", lembrem-se por favor de que a história só termina após a resolução do problema. Não sendo a vida uma narrativa de um evento só, é importante ter presente que esta só chegará ao fim quando se esgotarem todas as páginas em que é escrita. A um problema resolvido seguir-se-á sempre outro, na sua escala tão própria. O importante a reter aqui é que, ultrapassado um problema, poderão realmente ser felizes: até que um outro se atravesse no caminho para colocar à prova essa tão especial união. Se a história será de encantar isso ninguém saberá dizer. Se será para durar, quer queiramos quer não, também não o poderemos afirmar. Que seja antes enquanto valer a pena. Só e apenas: enquanto os sorrisos forem em número suficiente para que valha a pena.

Ao ler o teu texto gostava de me sentar contigo e de te alertar para a impossibilidade de muito do que escreveste. Queria dizer-te que os receios iniciais que referes tinham 50% de probabilidade de serem justificados - mas a verdade é que existia também a possibilidade de que o amor fosse correspondido e só uma menina destemida como a Josefina arriscaria. Talvez por isso tenha sido tão bem sucedida: só assim se explica que uma carta tenha resistido à sujidade do caixote do lixo, acabando por conduzir ao casamento dos dois.
Talvez sejas tu quem, afinal, tem uma lição a transmitir.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 3 de outubro de 2013