domingo, 31 de março de 2013

31 de março de 2013

Há novos hábitos que se criam quando tudo à nossa volta é diferente.
Aprendemos a viver mais para nós, mais connosco mesmos. Não dependemos tanto, não damos tanto. Fecham-se as portas depressa para que nada saia, nada entre. Aprendemos a ser por nós, a fazer para nós e por nós - sabendo que aqui essa é a força maior. Depois olhamos em redor, agarramo-nos ao que temos em redor, e valorizamos as pessoas. São as que se escolhem, as que fazem parte, a rede que nos suporta. São como que uma família.
Criam-se novos hábitos quando quem está à nossa volta é diferente.
Aprendemos novas línguas, novas regras. Respeitamos, com receio, as ordens dadas pelos bonequinhos verde e vermelho, cumprimos a preceito os hábitos da sociedade a que queremos pertencer.
Depois juntamos a família à volta da mesa e recuperamos os hábitos que deixámos lá longe, à distância. Abre-se uma garrafa de vinho - tinto - e inala-se com vontade o cheiro das carnes, dos enchidos. Negoceia-se quem trará na mala, na próxima viagem, o bacalhau para comer com as batatas - e vá, se as saudades apertarem, até com as couves. Salivamos ao pensar num peixe fresquinho grelhado no carvão.
Criam-se novos hábitos quando a família se constrói.
No computador, à hora do jantar há invariavelmente uma língua que é a nossa, as notícias de um país que é o nosso, de uma crise que - ainda que lá longe - temos ainda como nossa. Acompanha-se a atualidade como se ainda fizéssemos parte dela. Não se sabe se voltaremos a ser parte integrante, não sabemos sequer se queremos ou se só a crise não deixa que façamos. Torce-se mais pela seleção e pelo clube do coração em cafés em que a língua que falamos está em clara minoria.
Correm os dias com o hábito. Quer-se mais. Vive-se mais. Talvez se sofra menos - é que com o hábito tudo custa menos. Gosta-se até. Gosta-se mesmo.
E depois ouvimos um
- então até amanhã, Zé!
dito assim, com estas palavrinhas, e que nos transporta milhares de quilómetros,  nos arranca um sorriso e nos aquece - nem que por um bocadinho - o coração.

sexta-feira, 29 de março de 2013

quinta-feira, 28 de março de 2013

28 de março de 2013

Estava a entrar em sobreaquecimento - e tu sabes.
As pás não paravam de girar cá dentro, tentando arrefecer os circuitos. A informação passava mais devagar, aos soluços. E o barulho das pás - sempre a girarem, a girarem - não parava por um segundo. Um ruído constante que me entorpecia o pensamento.
Estava em sobreaquecimento e não conseguia travá-lo. Queria interrompê-lo. Queria desligar-me da corrente, cessar o ruído no topo de mim - e em todo o lado.
A informação a circular, o ruído, a temperatura. A respiração interrompida, presa na garganta.
As pás a girarem, o ruído. As pás a girarem, o ruído. As pás a girarem. O ruído.
Encosto-me à parede. A boca a abrir e a fechar. A mão no peito. Os olhos muito abertos e brilhantes - brilhantes e quase molhados. Olho-te com a boca muito aberta e a mão a apertar-me o peito como se, se apertasse mais fundo, pudesse arrancar todos os circuitos e assim cessar o sobreaquecimento.
Olhas-me de olhos brilhantes. Olhas-me com tudo o que trazes aí. Olhas-me nos olhos. Olhas o brilho dos meus olhos, a boca muito aberta, a mão que me aperta o peito, as pernas que começam a ceder. Aproximas-te a medo. Aproximas-te de brilho nos olhos e boca a abrir e a fechar cheia de palavras que não deixas sair. Aproximas-te e levantas o braço na minha direção. A mão na minha direção. Esticas mais um bocadinho, tocando-me quase. A tua mão a centímetros de mim, a centímetros de tudo o que querias sossegar. E depois, lentamente, com os olhos fixos nos meus e a boca ainda a abrir e fechar, esticas-te e desligas-me da corrente.
Falta-me o ar. Arrepanho a camisola e encosto-me mais à parede. Todo o corpo encostado à parede. Falta-me o ar. Falta-me o ar e a força nas pernas. Olho-te de olhos muito abertos e sem ar. Olho-te de olhos muito abertos e com linhas finas a escorregarem, a libertarem-se finalmente. Escorrego. Escorrego devagarinho em direção ao chão. Escorrego devagarinho em direção ao frio do chão para me deitar, para deixar que a energia abandone cada um dos circuitos, para esperar que as pás cessem todo o seu movimento, para esperar que o ruído sossegue no topo de mim - e em todos os outros lugares.
Deixo-me ficar. Deixo-me ficar a sentir as linhas a traçarem-se no meu rosto - finas, fininhas - e a respiração - primeiro rápida - a recuperar o seu ritmo, a sua calma, à medida que o sangue me volta a circular pelas veias no seu ritmo regular. Deixo-me ficar a ver-te, ainda sem conseguir controlar os movimentos do meu corpo. Abro e fecho a boca para te falar mas tudo o que trago cá dentro é silêncio.

segunda-feira, 25 de março de 2013

25 de março de 2013


(banda sonora para a leitura)

Se é para ir vai com tudo.
Sempre foi assim, sem meias medidas.
Aproximaste-te da beira e saltaste a pés juntos. Não olhaste em redor, não viste as marcas da profundidade, não espreitaste lá para baixo. Saltaste a pés juntos para o que havia de ser, sem saberes o que era, sem saberes o que querias que fosse.
Saltaste a pés juntos, de nariz tapado, respiração suspensa. Não inspiraste, não expiraste e até os olhos mantiveste fechados enquanto o teu corpo permanecia suspenso.
Saltaste a pés juntos cheia de convicção em direção ao vazio. Deixaste-te ficar, corpo esticado, em direção ao fundo. Abriste os olhos e o que viste não chegou para te tranquilizar. Não havia fim à vista, não havia uma beira a que te pudesses apoiar. Soltaste o nariz, soltaste os braços e as pernas. Soltaste a respiração. Abriste muito os olhos, procurando ver mais à frente, mais longe. E mexeste-te. Mexeste-te cheia de pressa, com o sangue a circular mais depressa nas veias, aquecendo-te a pele. Abriste e fechaste braços e pernas, afastando-te em direção a parte incerta. E subiste, subiste em direção à tona, subiste até que os teus olhos encontrassem a luz e as palmas das tuas mãos encontrassem a beira para, de uma só vez, ergueres todo o corpo e te soltares da água. 
Arrefece-te a pele ao parares. Pontas dos dedos enrugadas, pernas que te tremem lá em baixo. Sempre foi assim, sem meias medidas.
Saltas a pés juntos uma e outra vez. Porque se é para ir então que seja com tudo. Uma e outra vez.
E a cada salto a tua pele vai-se tornando mais resistente à temperatura. Fria ou quente. Movimentas-te com mais pressa, mais medo, mais vontade. Crias uma camada protetora mas sabes que vais, que não ficas, que não deixas de saltar. Uma e outra vez. Saltas convicta. Saltas com tudo.
Porque, se é para ires, então vais com tudo. Em tudo.

segunda-feira, 18 de março de 2013

18 de março de 2013

(banda sonora)

De cada vez que os teus pés pisam o chão calcas bem fundo mais uma questão. Uma atrás da outra.
Questão, questão.
Questão, questão.
Inspiras e expiras de abdominal contraído - e o órgão que trazes ao peito apertado.
Corres. Corres para longe ou corres em redor. Passada atrás de passada.
Questão, questão.
Questão, questão.
Calcas com força o chão e corres para longe antes que te possam apanhar.
Questão, questão.
Questão, questão.
Inspiras e expiras e perguntas em silêncio ao orgão no topo de ti quando poderás parar.
Questão, questão.
Cada um dos teus passos continua a depositá-las mais abaixo, mais fundo, esperando enterrá-las bem - longe de onde estarás na próxima passada.
Abrandas. Mentalmente, vejo-te abrandar. Dentro das calças pretas que se te colam à pele vejo as tuas pernas, de repente tão esguias, a abrandarem. Os teus joelhos continuam a fletirem-se, um após o outro, mas demoradamente, como se por momentos pairasses apenas, por segundos infinitos em que um dos teus pés já se levantou mas o outro ainda não tocou o chão. Moves-te como que em câmara lenta. Um joelho. Um pé. Outro joelho. Outro pé.
Questão.
Questão.
Questão.
Questão.
Observo-te em silêncio nessa corrida de compasso lento, demorado. Observo os teus olhos a molharem-te todo o rosto e o punho da camisola a enxugá-lo depressa - para que eu não veja, para que tu própria não o vejas. Enxugas com pressa e com algo mais. É o brilhozinho frio que acompanha cada passada que dás com força, assentando no chão, com todo o teu peso, cada uma das questões que trazes em ti.
E continuas.
Questão, questão.
Questão, questão.
Um pé atrás do outro, passada após passada, calcas bem fundo no chão tudo de que te queres livrar.
Paras. De repente paras. Apoias as mãos nos joelhos, inspirando e expirando apressadamente, com o órgão que trazes ao peito a bater descompassadamente. Inspiras e expiras a custo. Respiras alívio. E, de pernas bem esticadas, levas também ao chão as palmas das tuas mãos, esperando que ao esfregá-las no chão ajudes a enterrar mais fundo tudo o que a custo calcaste já com os pés.

terça-feira, 12 de março de 2013

12 de março de 2013

Quantas das tuas palavras são silêncios demorados em que ninguém parece reparar?
Os olhos expressivos que procuram substituir a voz. A lapiseira na ponta dos dedos a prolongar o silêncio sonoro. Os dias que se arrastam sem que uma palavra seja trocada.
Eu reparo. Eu reparo no silêncio, em cada um deles. Eu reparo nos silêncios e procuro dar-lhes voz. Analiso cada um deles à luz da história que é a tua. Por cada silêncio teu eu crio uma palavra.
E vou somando palavras. Um conjunto infinito delas. Uma sequência sem critério. Ligam-se pouco umas às outras, apenas aqui e ali. E formam uma sequência aleatória que nos atira para a frente e para trás, opondo-se muitas vezes umas às outras e seguindo numa ordem desordenada que se traduz em silêncios demorados e sem nexo, capazes de nos afastarem da origem.

sábado, 9 de março de 2013

7 de março de 2013


(banda sonora para a leitura - há que encontrar o ritmo)

Uma espécie de jogo das cadeiras. Cada vez que trocarmos de lugar trocamos de personagem, falamos de nós próprios na terceira pessoa do singular. Colocamos todas as questões.
Salto para o outro lugar, cruzo as pernas à chinês, levo o vidro à boca e solto uma gargalhada isolada quando o meu olhar se cruza com o teu do outro lado da mesa. Questiono. Atiro perguntas que só posso fazer quando não sou parte da questão. Vejo os teus olhos abrirem-se mais de espanto a cada uma mas encolho os ombros, de sorriso posto, perante a inevitabilidade da resposta - e a perspetiva de não haver lugar a ressentimentos agora que eu não sou eu.
Troca. Sou eu outra vez. Respondo por mim quando tu já és afinal elemento externo.
Troca.
Troca.
Troca.
Troca.
Pausas momentâneas para substituir vidros, para acender cigarros. Não há perguntas sem resposta nem tempo para as ponderar. Eliminam-se os filtros agora que voltámos a ser outras pessoas que não estas.
Troca.
Troca.
Troca.
Troca até que as perguntas se esgotem. Troca até que tudo tenha sido esmiuçado.
Troca.
Troca.
Troca até que estejamos prontos para retomar o nosso lugar normal. Troca até que, depois de tudo dito, possamos prosseguir do ponto em que estamos.
Troca.
Troca até à exaustão.
Troca.
Troca até que caiamos nas cadeiras absolutamente estafados e com uma gargalhada conjunta e demorada capaz de arrumar cada resposta no devido lugar.

quarta-feira, 6 de março de 2013

5 de março de 2013

 
(banda sonora para a leitura)

Sentada na cadeira do gabinete branco enfrentas a medo o fantasma maior em ti. Inspiras e expiras a custo, forçando o ar a passar pelo túnel cada vez mais estreito que te liga ao exterior.
Fitas os olhos no topo da bata branca enquanto o ouves a desmanchar todos os castelos assombrados que ergueras em tão pouco tempo. Ouves as explicações e mentalmente vais traçando cruzes por cima de cada uma das fases que ele queimou. Revês o passado e procuras ligar as palavras a fases diferentes. Procuras localizar no tempo cada uma das etapas em que ele poderia ter parado, em que ele poderia ter evitado todas as sombras que trazemos connosco, em que ele poderia ter evitado tudo o que nos trouxe, em que ele poderia conquistar tempo aqui. Eliminas mentalmente, uma a uma, cada etapa que fez por ignorar, e por cada etapa uma imagem mais desfeita, mais pequena, mais minguada de si.
Sentamo-nos nesta cadeira vezes sem conta para que connosco seja diferente. Erguemos castelos assombrados que nos lembram as histórias que trazemos em nós e esperamos, esperamos com força e com uma vontade tamanha, que alguém nos ajude a desmanchá-los.

segunda-feira, 4 de março de 2013

3 de março de 2013

(banda sonora para a leitura)

Puxo-te para baixo para que não me leves contigo. Tens a minha mão segura na tua e levas-me contigo em cada uma das tuas subidas. É por isso que te puxo. Quero os meus pés bem assentes na terra e caminhar seguro em cada um dos meus passos.
Já andei lá por cima. Já vi as vistas, já sofri as vertigens, já caí lá em baixo. A queda foi tão grande que me pareceu demorada: segundos infinitos em que revi cada momento, em que ouvi de novo cada uma das palavras, em que revi cada um dos sinais de aviso que havia ignorado. Vezes sem conta. Revi cada momento à medida que um nó maior se formava em mim. E de repente o silêncio, o escuro em redor. Tudo o que há é uma dor maior em mim. Estou em choque. Tenho um nó na garganta, um nó no estômago - e suponho que também nos olhos, nos ouvidos. Nada entra, nada sai. Quero levantar-me. Quero comandar o meu corpo, ordenar-lhe que se recomponha, que se levante inteiro e caminhe para longe. Mas estou esmagado por este peso no peito e o que tenho não chega para o mover. Eu sei que se me deixar ficar ele acabará por passar.
Seguras a minha mão na tua e caminhamos juntos lado a lado. Mas há, entre elas, entre as nossas mãos, nas nossas mãos, uma tensão maior. O meu braço está a ser puxado, todo eu estou a ser puxado para cima, numa diagonal ascendente. E puxo-te. Puxo-te porque trago ainda um peso maior no peito, porque de cada vez que penso em subir todo o meu corpo se contrái ao pensar na descida.
Puxo-te para baixo para que não me leves contigo, para que me deixes caminhar seguro em cada um dos meus passos - para que não haja nunca uma dor maior em ti e um peso que te esmague o peito.