segunda-feira, 11 de novembro de 2013

7 de novembro de 2013

Bebeu para esquecer*
Não sei há quanto tempo é que ela fez disto vida. Sei que às vezes, quando a meio do dia desço para fumar um cigarro e nos cruzamos no corredor, troco o sorriso da praxe e sigo caminho – com ela no pensamento.
Os anos que nos distanciam chegam-me ainda para a observar com outros olhos. E os meus olhos preferiam não ver a tristeza que traz nos seus. São olhos sem brilho de quem já não se deixa impressionar. São olhos de quem, talvez, julga já ter visto tudo o que de bom havia para ver.
Há anos fez nascer duas crianças. Crianças que cresceram, que deixaram o ninho e que deixaram já hoje nascer outras crianças.
Há anos arranjou um marido. Ainda antes das crianças, arranjou-lhes um pai. Mas o pai, depois de o ser, depois de o ser há já anos, decidiu arranjar outra mulher. Não uma coisa séria, assumida. Antes uma das outras. Parece que ele procurava a atenção que ela não lhe dava, o elogio que se perdera no tempo. Parece que ele afinal gostava de mensagens capazes de causarem apertos e dilatações, de se arrastarem pela corrente sanguínea. Parece que ele gostava de uma safadeza ou outra – mas fora de casa, que com a mulher de casa parecia mal.
Ela, com o sexto sentido que todas as mulheres têm, um dia leu demais. Então ela soube. Soube logo mal leu uma mensagem ou outra. Soube tanto e tão bem – mas logo quis esquecer.
A cabeça na almofada não tinha descanso. As imagens que as mensagens trouxeram até si sempre ali, sempre a recordarem-na de que o homem que aturara durante grande parte da sua vida – a ressonar, a queixar-se do trabalho, a ter problemas de dilatação, a não lhe causar um friozinho na barriga – era afinal um sacana de primeira.
Então ela bebeu. Bebeu uma vez. Bebeu mais duas ou três. Bebeu para esquecer. Bebeu até o suficiente para se esquecer do que bebia.
A seguir quis beber para olhar em volta sem focar. Quis seguir a vida sem prestar atenção. Quis olhar em redor sem distinguir os limites das coisas.
Mas como tudo na vida tem um limite – e como nem todos são bons – também o dela chegou. Ou esquecia a bebida ou esquecia o que a pagava. E é por isso que agora se arrasta aqui. Com o que pagava a bebida mas sem a poder comprar, a vê-la passear-se à sua frente e a querer afastá-la, a querer aproximá-la – como quer também fazer com o sacana do marido com que continua a partilhar a cama.
Arrasta-se pelo corredor entre a cor mais neutra que quase permite a sua camuflagem e outras, mais vibrantes, que a ajudam a perceber que ainda está viva e – quase – de boa saúde.
Os olhos, esses, não esquecem o que viram e o seu não brilho sempre ali para nos lembrarem do que sabem.
* Texto publicado no blog A Vida em Posts, a 11 de novembro de 2013.

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