Mais (do que) uma carta.*
Estou aqui, sentada de
frente para a rua, com a perna direita, cruzada sobre a esquerda, a baloiçar no
ar – ou as pontas de ambos os pés pousadas ao de leve no chão e as pernas a
agitarem-se, a agitarem-se. Estou aqui a segurar a lapiseira amarela entre os
dedos e a procurar ignorar a vontade de segurar antes um cigarro. Estou aqui a
tentar encontrar as palavras para te escrever nesta folha de linhas estreitas
pousada sobre a mesa. E vou escrevendo estas enquanto não encontro as outras.
Esta carta é mais do que
uma simples carta. Esta carta não chega bem a ser uma carta. Esta carta, estas
palavras, existem apenas para acompanhar as outras, para acompanhar o maço de
cartas que segue também neste envelope. Esta carta existe para que tudo te seja
dito. TUDO! – ainda que depois desta estar selada me possam ocorrer uma série
de outras palavras que gostaria também de te dirigir.
Quero com esta carta
explicar-te o significado de todas as outras. Quero, com esta, tornar-te mais
acessível o conteúdo de cada uma das outras. Quase que traduzir-tas para um
tempo, para uma altura, em que vivias em mim – porque só à luz dessa realidade
elas te poderão fazer um (ainda que ínfimo) sentido.
Continuo aqui sentada. Não
me mexi daqui mas há já no ar um fumo ligeiro, um fumo que inspiro
profundamente, um fumo que, espero, me ajudará a apaziguar esta ansiedade que
se me acumula na garganta. Um fumo que eliminará este nó que se me formou na
garganta quase ao ponto de me tirar o ar.
Porque o faço agora? O que
me leva a reunir todos os escritos e a endereçar-tos tanto tempo passado?
Porquê reavivar o que já foi, o que não volta mais, o que não mais quero que
volte?
Porque preciso de to dizer.
Preciso de te entregar todas as palavras para que saibas. Para que percebas
agora o que antes te tentei dizer. Para que te pertençam – talvez na esperança
de que, pertencendo-te, me abandonem de vez.
Preciso de to dizer para
partilhar contigo tudo o que foi em mim – ainda que em ti pouco tenha
acontecido. Preciso de to dizer, palavra por palavra, para que os teus olhos se
pousem lá mais atrás, para que dês – ainda que seja tarde – atenção a tudo o
que disse, a todas as pequenas (grandes) atenções, a todas as palavras que
leste com o dedo a arrastar-se sobre o rato.
Podes guardá-las assim.
Intocadas. Coloca-as numa caixa – numa daquelas que acumulamos nos sótãos de
casa dos pais, numa daquelas em que não voltamos a mexer – não até que as
coloquemos num caixote do lixo a meio de umas quaisquer mudanças. Coloca-as numa
caixa e diz-me que não as recebeste, que não te chegaram, que os correios não
funcionam neste país em que vivemos. Mas guarda-as em ti, por favor. Guarda-as
em ti que em mim já não cabem mais. Já não pertencem aqui.
*Texto publicado no blog A Vida em Posts, no Brasil, a 26 de maio de 2014
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