domingo, 4 de setembro de 2022

3 de setembro de 2022

Sentados no quarto do F, fazíamos uma qualquer brincadeira. Ouvimos o barulho, curto, de algo a arrastar, seguido do estrondo de algo a cair no chão. Lembro-me de pensar “a vizinha de cima deixou cair qualquer coisa” e de ter continuado a brincadeira por mais um ou dois minutos - ou terá sido menos? - até que umas batidas fortes na porta, acompanhadas de um pedido de ajuda, me fizeram levantar de um salto.
Fiz o curtíssimo caminho até à porta convencida de que tinha acontecido algo à vizinha do lado, já bem velhota, e que a filha estaria a pedir-nos ajuda. Quando abri a porta e vi a do vizinho da frente aberta, não estranhei, pensei que também fosse ajudar a socorrer a vizinha. 
O choque começou quando ouvi a voz que nos pedira ajuda a dizer, desse mesmo apartamento em frente ao nosso
- É o C., o C. caiu no chão. 
Entrámos pelo apartamento adentro e ele ali estava, caído no chão da cozinha, inconsciente e a sangrar.
O Luís ficou, eu voltei a sair. Voltei a casa, peguei no telemóvel e liguei para o 112. Enquanto falava com a senhora do CODU sentava o F. na cama do Alf, que fica mesmo perto da porta, e punha-lhe o iPad nas mãos para ver a Patrulha Pata.
- Não saias daqui, estou na casa do Sr. C. Se precisares de alguma coisa chama a mãe.
Certificámo-nos de que não saía da posição lateral de segurança enquanto chamávamos por ele.
- Sr. C, está a ouvir-nos? Sr. C respire. Estamos aqui consigo. Sr. C, está a ouvir-nos? Vá lá, Sr. C., fique connosco.
Enquanto repetíamos isto uma e outra vez, voltava a casa para ver do F., íamos à janela para ver da ambulância, abraçávamos a amiga que por sorte estava de visita ao Sr. C. e assim o pôde socorrer.
- Ele é o meu único amigo, ajudem-me pf. 
Não podíamos quebrar. Continuámos a falar com ele, para ele. Continuámos a falar com ela. Demos nome a uma cara e presença que fomos vendo uma e outra vez.
Nos vinte minutos que a ambulância demorou a chegar, o Sr. C. foi passando por diferentes níveis de consciência. Lembro-me de olhar para a sua mão, fechada com força, e de pensar que não o traríamos de volta. Depois começou a mexer-se, desconfortável. Pedimos-lhe para se deixar estar, pedimos que não se virasse. Conseguiu erguer-se nos cotovelos para se virar para o lado oposto. Mexeu na cabeça e soltou um ou outro queixume - não palavras, sons apenas.
- Sr. C., está a ouvir-nos?
- Hum.
- A ajuda já deve estar a chegar.
- Hum.
A ambulância chegou. Três bombeiros, um deles estagiário. Não percebi muito da avaliação que fizeram, só achei tudo extremamente lento e descontraído. Colocaram-lhe uma máscara ainda antes de o imobilizarem.
- É mesmo preciso isso?
- Depois já não conseguimos.
“E isso seria um problema para quem?” - pensámos todos.
Precisavam do cartão do cidadão do senhor. Olhámos em volta, percorremos todas as superfícies sem sinal da carteira. Avançámos para as gavetas - um exemplo de organização - e da carteira nem sinal. A dada altura olhei para ele e pensei que a teria no bolso. Era afinal um osso, dos muitos que tem salientes pelos tantos quilómetros de corrida semanais. Os meus olhos encontraram por fim a mochila preta com que já o vira antes, poisada na cama do quarto desocupado.
Lembrei-me de que devíamos contactar o filho mas nem o seu nome sabia. A amiga, felizmente, soube logo dizê-lo. Peguei no telemóvel dele a medo, pensando como conseguiria desbloqueá-lo. Não tinha código. Procurei nas últimas chamadas e liguei. Expliquei tudo com uma calma que não sentia.
Colocaram-no na ambulância trinta ou quarenta minutos depois de chegarem. Só queríamos empurrá-los até lá para que tudo fosse mais rápido. Demoraram mais dez minutos, aqui parados, até que soubessem para que o hospital o deveriam levar - o GO está a 10 minutos de nossa casa.
Quando a ambulância chegou, o filho já lá estava. Nunca houve informações médicas para além de “já fez uma TAC, aguarda consulta em neurocirurgia” ou, no dia seguinte “vai ter de repetir a TAC”. 
Foi preciso pedir ajuda a contactos de contactos no GO para se conseguir saber o seu estado clínico. Foi preciso fazê-lo até para se saber que teria tido alta - mesmo sem o filho saber. Depois de horas a tentar ligar para o GO, foi buscá-lo. Veio para casa. No dia seguinte seguiu para um hospital privado em que repetiu todos os exames. Espera-se recuperação total em 3 semanas.
Fomos visitá-lo há uns dois dias. O atleta que todos os dias corria vários quilómetros, apesar dos 65 anos de idade, estava muito parado no sofá. Do sucedido, nada recorda mas mandou um beijinho para o F. Sentado quase no escuro, vi-lhe o rosto negro. O Alf também foi cumprimentá-lo e deixou-se ficar sentado aos seus pés.
Esta noite, a primeira que passou sozinho após o acidente, ficámos com as chaves de casa como SOS. Por volta das 3h, 4h da manhã acordei com o estrondo de algo a cair. Disse “caiu” e saí da cama que nem uma flecha. No hall, enquanto decidíamos o que fazer, o Luís disse 
- Vai lá à varanda e vê se não foram as cadeiras.
Tinham sido. O Sr. C. estava em segurança.
Há perguntas que não deixam de ecoar cá dentro. E se estivesse sozinho? Se a amiga não estivesse com ele, teríamos ouvido a queda sem saber e continuado o nosso dia com toda a normalidade? Ficava ali a morrer no chão da cozinha? E se ele voltar a cair e nós não ouvirmos?

2 comentários:

  1. A minha escritora preferida. Welcome back.

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  2. Gosto tanto de te ver a voltar, mesmo que tenha sido por um motivo que tanto mexeu contigo/convosco. Beijinho!

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