terça-feira, 9 de abril de 2013

9 de abril de 2013



(banda sonora para a leitura)

Sentada de pernas esticadas sobre a mesa, as costas encostadas à almofada, uma madeixa de cabelo a ser enrolada na ponta do dedo indicador, entre esse e o polegar. Inspiras e, ao expirares, abres o livro que tens pousado sobre as pernas. 
Lês palavra atrás de palavra, linha atrás de linha, com as páginas a passarem depressa. Focas as letras, num esforço consciente para que o teu olhar não se levante, para que os teus olhos não foquem a gaveta aberta que te ocupa parte do campo visual. Voltas atrás repetidas vezes, com a atenção dispersa entre o livro pousado nas tuas pernas e a gaveta aberta que consegues ver através do canto do teu olho esquerdo.
Abres mais os olhos para de seguida os semicerrares, procurando focar mais as letras, diminuir o campo de visão. Mantens-te assim por minutos que parecem demorar horas, com a pele enrugada à volta dos olhos e a expressão alterada pelo esforço.
A gaveta aberta que consegues ver pelo canto do olho cria-te um formigueiro nas pernas e nos braços - e um maior aí dentro, a correr-te pelas veias. Procuras ignorá-la. Procuras empurrá-la para longe - como se os teus olhos tivessem braços e esses fossem fortes o suficiente para empurrar para longe uma gaveta como aquela. Pestanejas com força, pestanejas para humedecer a vista e para clarear a visão. Dobras as pernas e abraças os joelhos e os teus olhos continuam pousados no livro, a cara virada para baixo - num esforço tão consciente que quase sentes duas mãos a amparar-te a cabeça para que se mantenha imóvel.
Inspiras e expiras. Atiras o livro para o lado e puxas de um cigarro. Sentada à chinês, com o corpo a balançar ligeiramente para a frente e para trás, observas de frente a gaveta aberta. 
Já a tentaste fechar antes. Usaste toda a tua força para a empurrares para dentro, para a colocares no seu devido lugar.  Inclinaste o tronco, com os braços esticados à frente do peito e as tuas pernas esticadas lá mais atrás, alongando-se numa diagonal forte. Cerraste os maxilares e empurraste com toda a tua força mas a gaveta, de tão cheia, quase não saiu do mesmo lugar. Tentaste e voltaste a tentar e paraste apenas quando, de tanto tentar, o sangue te correu mais depressa nas veias e te gerou um formigueiro difícil de conter. Fingiste não a ver. Leste mais umas páginas, fumaste mais uns cigarros, mas a visão da gaveta aberta não deixou que o teu olhar focasse as letras e o teu cérebro acompanhasse as ideias. 
Deixas-te ficar aí sentada a inalar e a exalar o fumo de mais um cigarro, olhando a gaveta aberta e procurando definir uma estratégia para a colocares no sítio. Levantas-te, mãos na cintura, pernas abertas à largura da bacia. Inclinas ligeiramente a cabeça enquanto observas o conteúdo da gaveta. É o caos que contém que não te permite colocá-la no sítio. Quando todas as partes encaixarem uma nas outras conseguirás empurrá-la, apenas com um dedo, para o seu lugar. E por isso puxas a gaveta, suportas o seu peso até ao chão e despejas todo o seu conteúdo. Remexes. Pegas em cada uma das partes e depositas toda a tua atenção, arrancando sorrisos e outras coisas aí de dentro com cada uma. Colocas dentro da gaveta elemento atrás de elemento, procurando acomodá-los a todos. Abanas a cabeça e despeja-los novamente. Recomeças. Remexes uma e outra vez e sentes o formigueiro a apoderar-se mais de ti de cada vez que tens de recomeçar. Sacodes os braços no ar, procurando atirá-lo para longe. Prossegues. Sabes que poderás ter de o fazer uma e outra vez mas que, quando todos os elementos encaixarem uns nos outros, poderás finalmente fechar a gaveta. Talvez a possas fechar para sempre ou talvez, ao mexeres numa das partes, lances novamente o caos e tenhas de recomeçar, remexendo cada uma das partes como se da primeira vez se tratasse, para que tudo encaixe no devido lugar. E depois, quando a gaveta estiver realmente fechada, podes voltar a sentar-te aí, com as pernas esticadas sobre a mesa, as costas confortavelmente encostadas às almofadas e o cabelo a ser enrolado à volta do indicador, ao mesmo tempo que os teus olhos, focados nas palavras, devoram uma atrás de outra nas páginas que não param de passar.

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