Retrato do(s) Vendedor(es) de Praia*
Percorrem
a praia de lés-a-lés.
Caminham
descalços sobre a areia quente com o sol como única companhia. Vão e vêm um sem
número de vezes desde que o sol nasce e as suas caminhadas cessam apenas depois
deste se ir.
Recebem-nos
logo à chegada. Enquanto esticamos as toalhas na areia queixando-nos da falta
de espaço, enquanto espalhamos o protector solar pela pele, eles vagueiam,
caminhando de um lado ao outro da praia. E quando nos refrescamos, dizendo que
a água está fria de mais, eles continuam a caminhar.
Ao
ombro, sobre a roupa que nunca despem, levam o saco de viagem carregado.
Pendurado neste, cabides e cabides de saias, vestidos e outras saídas de praia.
No ombro que poderia estar livre levam malas que dizem ser de marca e nas mãos,
sempre ocupadas, óculos espetados em caixas de esferovite, pulseiras enfiados
em tubos de cartão. Lá mais em cima, sobre a cabeça, uma pilha de chapéus que
assentam — caso existam — sobre os seus.
Caminham
sozinhos e em silêncio, talvez contando os passos dados sobre os grãos quentes
de areia. Anos e anos vividos mais a Sul, onde o sol queima a terra e a
vegetação e onde os animais não se alimentam o suficiente para os alimentar.
Anos e anos aqui, percorrendo a praia nos dias de Verão. Observo-os nas suas
idas e vindas e questiono-me — sem sequer mexer a boca — de onde vêm e para
onde irão depois, mais logo, quando nós nos aperaltarmos para horas e horas de
copo na mão.
São às
dezenas. Cruzam-se por vezes no caminho, cumprimentando-se com um breve acenar
de cabeça. Não sei se terão algo mais em comum, se partilham laços ou origens,
se partilham encostos noite dentro.
Quando
lhes perguntamos o preço ajoelham-se na areia. Quando lhes dizemos que não vale
a pena respondem-nos que assim se vê melhor. Aliviam os ombros espalhando todos
os pertences em seu redor e enquanto observamos mais de perto o que têm para
vender procuram recuperar o fôlego. Numa mão seguram os chapéus e, na outra,
uma toalha turca pequena com que procuram secar o cabelo —já grisalho — a barba
e o pescoço. Não comem. Não bebem.
Sem
dinheiro na carteira pedimos que voltem amanhã. Amanhã estaremos cá, aqui, no
mesmo sítio. Dizem que sim, que eles também estão cá: todos os dias. E enquanto
se preparam para partir — voltando a colocar ao ombro o saco, as saídas de
praia e o que mais houver — observo com atenção os rostos. As marcas da
idade avançada. Os olhos. A barba grossa. A boca sempre aberta. Questiono-me —
em silêncio, que em voz alta não sei como seria a reacção — o que comem para
que as calças lhes estejam a escorregar pela cintura já a meio caminho do rabo,
quando se hidratam, onde descansam quando se tornam invisíveis aos nossos olhos
— se é que para alguns de nós alguma vez o deixam de ser.
*Crónica publicada no Público
P3 a 20 de agosto de 2013.
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