terça-feira, 12 de novembro de 2024

12 de novembro de 2024

Um dia, numa sessão de terapia, falávamos do quão disruptivo o ruído é para mim, de como a minha ansiedade escala quando há demasiados estímulos em meu redor - especialmente os sonoros. Descobri, nesse dia, que colocar as mãos em concha sobre os ouvidos me consegue devolver alguma calma. 

Há um ano ou dois, já depois dessa sessão, comprei uns tampões para os ouvidos. Pensei, até, que estaria a exagerar mas pouco tempo depois, numa viagem de trabalho, percebi que não era a única a usá-los, que havia até quem tivesse mais do que um modelo.

Uso-os em almoços ruidosos, centros comerciais ou em salas partilhadas quando qualquer som me faz perder o foco. Uso-os em ambientes em que a minha respiração acelera, o ar não me desce do peito e a minha ansiedade dispara. Coloco-os e a sensação é a de vir à tona depois de ter sustido a respiração por demasiado tempo.


Ter os tampões nos ouvidos consegue (quase) reproduzir a sensação de quando flutuo de ouvidos submersos e oiço a minha própria respiração - e nada mais. 

Imagino-me muitas vezes a entrar no mar gelado, a sentir aquele choque térmico, a ter de controlar a respiração e a deixar que o frio me desligue as ideias, me bloqueie os sentidos e seja só eu e o mar. Eu, os meus ouvidos submersos e a minha respiração a fazer-se ouvir. Desligar.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

15 de agosto de 2024


Saíram da minha vida, não sei se de repente ou se foi um afastamento gradual. 

Eu estava ali, a entrar na faculdade, a conhecer pessoas, a tentar ultrapassar a dor de o ter perdido e às tantas dei conta de que me tinhas desaparecido sem que eu soubesse como nem porquê.

Ou então já mais tarde, depois de mudar de trabalho, de dar a volta ao final de uma relação.

Ou agora, mais recentemente, quando os jantares deixaram de acontecer e dei por mim a insistir para que marcássemos alguma coisa, sentindo-me coxa da tua companhia.


Sei que há na minha história pessoas, várias, que se foram. Um ghosting, como se diz hoje em dia, de quem se vai sem pré-aviso e corta todos os meios de comunicação. Não sei porque o fizeste. Não sei e, talvez por isso, volto recorrentemente a este sítio.

Sonho contigo, uma e outra vez, ou recordo conversas que tivemos, ou rio-me sozinha de coisas que aconteceram - coisas que só tu e eu sabemos, coisas que vivemos, que não partilhámos, que fazem parte da nossa história.


O problema das pessoas que se vão - sem pré-aviso, sem motivo claro - é o que deixam para trás: medos, inseguranças, receio do abandono. Não sendo necessariamente sobre mim, nunca deixa realmente de o ser.

Questiono-me muitas vezes se as pessoas com quem me relaciono agora também um dia baterão com a porta, se estão por pena ou o que as leva, realmente, a estar ao meu lado. Se tu te foste, o que impede os outros de seguirem o mesmo caminho?

Por que razão estiveste ao meu lado? Por que motivo escolheste ir? Falhei-te? Deixei de te servir? Deixou de fazer sentido? Tantas perguntas, tão poucas respostas.


Escrevo isto e pouso os óculos ao meu lado no sofá. Cruzo mais as pernas e puxo o computador para cima. Limpo as lágrimas, uma e outra vez.

Os medos que são nossos não têm de pesar nos outros - mas o que se faz às perguntas sem resposta que continuam a ressoar cá dentro?


No outro dia, depois de um jantar de família, a minha irmã disse-me que ele tinha estado a ler o meu blogue. Achei engraçado. Devo ter sorrido, talvez até um pouco envergonhada - enquanto passava mentalmente em revista os temas que poderia ter encontrado por lá. 

Perguntei-lhe se tinha gostado, o que tinha achado. Perguntei-lhe se tinha chorado e rimo-nos os dois quando lhe sugeri que o usasse naqueles dias em que as lágrimas teimam em não sair. 

Ele comentou que eu nunca usava nomes, só pronomes. Curioso ter reparado.

Há uns anos, um velho amigo disse-me que eu tinha um registo muito próprio que ficava sempre íntimo para quem me lê.


A escrita pode fazer de nós as personagens principais de uma história que lemos - em que às vezes nos encaixamos mesmo. Talvez este texto pudesse ter sido um email, uma mensagem longa. Talvez este texto pudesse ter sido enviado aos destinatários. Talvez. Ou talvez assim possamos todos ser personagem e refletir sobre as vezes em que deixámos de (querer) estar e os motivos que nos fizeram partir ou ficar. Talvez possamos até pegar no telemóvel, no computador, num lápis ou caneta e escrever respostas que devemos a alguém. 


terça-feira, 16 de julho de 2024

16 de julho de 2024

Hoje o meu filho faz 6 anos - e eu nem sei bem como chegámos até aqui.

Há pouco uma amiga perguntava “como 6 anos?!” e eu respondi exatamente o que sinto: “também estou para perceber”.

(quase) todos os clichês acerca de ver crescer um filho correspondem à verdade, começando por aquele que nos dizem quando estamos de cabelo sujo e banho por tomar, de maminhas de fora e a fechar um olho de cada vez: “aproveita, passa depressa”. E passa. Passa muito depressa. 

Passa tão depressa que olhando para trás não tenho bem a certeza de ter estado inteiramente presente por algum tempo. Talvez não tenha estado, realmente, enquanto lutava contra este lugar de mãe, enquanto me procurava sem perceber que a versão anterior não existia mais.

Foram precisos anos e várias sessões de terapia - há que dizê-lo - para que eu me encontrasse no presente e parasse de procurar a Joana que ficou antes de 2018 - e que não mais voltará.

São dores de crescimento para que não nos preparam - ou pelo menos a mim ninguém me preparou. Hoje, faço questão de não deixar por dizer às minhas amigas que não são mães, faço questão de as preparar para o pior - esperando, sempre, que a sua experiência seja melhor do que a minha.

Ser mãe não é uma capacidade inata - pelo menos não para todas, não para mim. Não falo já de engravidar - embora pudesse dizer exatamente o mesmo a esse respeito. Falo de ser mãe, cuidadora, do ato de maternar. Ser mãe não só não é uma capacidade inata como, acredito também, não é para todas.

Talvez alguns de cansem de me ouvir dizer isto - ainda que eu não me canse de o dizer - que não fui feita para isto. A maternidade não me encaixa. E isso não quer dizer que eu não seja boa neste papel, que não o desempenhe com qualidade. Sei que o faço. Sei, também, que me sai do pelo, das entranhas, que me esforço muito, sem descanso. Sei que nunca me ouvirão dizer que ser mãe é o melhor do mundo - ainda que, claro, me dê muito de bom.

Ver crescer alguém e dar-lhe a mão é, muitas vezes, bater de frente com aquele que foi o nosso crescimento, as nossas experiências, a nossa educação. Ajudar um filho a superar inseguranças quando sou, eu própria, um poço delas é pisar muitas vezes em falso, é ter de ir pé ante pé em muitas situações. É saber que alguém conta connosco - para sempre - e que não podemos (ou gostaríamos de evitar) falhar.

Ser mãe é um exercício constante de superação - mais calma, mais paciência, mais empatia, mais compreensão, mais humor, mais rigor. É uma tentativa, constante, de fazer melhor do que fizeram connosco. E questionar, sempre, tantas vezes. É aprender que o importante é dar o meu melhor - e que esse varia de dia para dia - é tentar de novo quando for preciso, é pedir desculpa quando erro. 

Hoje o meu filho faz 6 anos. Está mais seguro, mais confiante. Quer ler, escrever e fazer contas. Adora futebol e ténis. Respeita os amigos e é respeitado. 

Às vezes, nos dias difíceis, também me sabe dizer “não gostei da forma como falaste” - e então eu sei que estou a fazer um bom trabalho.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

22 de agosto de 2023

Hoje lembrei-me de ti. Ia a conduzir e, de repente, vi-te. Não sei se foi a música que estava a ouvir, se alguém que passou, sei que te vi. Vi-te e as lágrimas correram-me, depressa, pela cara com um nó na garganta daqueles que me tiram o ar. 

Penso pouco em ti. Na verdade, acho que foi por isso que chorei: porque pensamos pouco em ti. Apesar dos anos de vida em comum, apesar de tudo, sinto que pensamos pouco em ti - menos do que merecias.

Não me deixaste o resto do dia. Fui revendo memórias desses anos. 


Lembrei-me de quando levei o relatório de um exame teu ao médico que nos acompanhava e de na manhã seguinte pedir um cigarro (SG Filtro) ao professor Zé Tomás na aula de matemática e de acabarmos por ficar os dois a fumar e a chorar juntos na sala de professores do P1 (P2?) pelos cancros que nos continuavam a levar pessoas queridas.

Lembrei-me de quando fui contigo ao IPO para ouvir ao teu lado o diagnóstico e o caminho que te era traçado. Lembro-me, até, de o Dr. Ricardo dizer que te podíamos deixar fumar à vontade já que depois não seria possível - o que não é bem verdade, já que vi vários a fazê-lo mesmo depois da traqueotomia.

Lembrei-me de quando te zangaste comigo porque fiz questão de informar a tua filha, que não mantinha contacto contigo, de que estavas doente - e ainda hoje me tranquiliza saber que te dei essa relação nos anos que tiveste depois do primeiro diagnóstico.


Lembrei-me de estar deitada na minha cama e de te ouvir falar no hall e de sair disparada, feliz e orgulhosa, por ter conseguido perceber tudo. Foste um paciente exemplar na terapia da fala, persistente na recuperação da tua voz - e o que o JD se ria ao ouvir-te falar. 


Lembrei-me, claro, de quando dois ou três anos depois, por altura do natal, começaste a ter dificuldade em engolir. Lembrei-me do medo - sempre o medo depois do meu pai - que senti. Lembrei-me de um almoço em casa do meu tio em que tiveste de sair da mesa porque a comida não descia. Lembrei-me de uma ida ao cinema - mas não do filme -, de a mãe se ter enganado e ter colocado gasolina em vez de gasóleo e de termos seguido no meu carro para o IPO porque de repente já havia sangue.

Lembro-me das urgências do IPO (que não se chamam assim), de um médico já entradote que te foi ver com um casaco de inverno azul escuro - que faz parte da farda do IPO - e de na manhã seguinte já lá estar novamente, ainda que não sendo filha, ainda que não podendo acompanhar-te. Lembro-me dos dias nos cuidados intermédios, de ler um ou dois livros agachada no corredor e de uma enfermeira se zangar comigo por não fazer como os outros e não me sentar na sala de espera. Lembro-me de nos dizerem que estava de volta e que vinha em força. De estarmos ao pés da cama, as duas lado a lado e a agirmos como palhaças enquanto víamos a tensão arterial a descer, a descer. De lhe telefonar a dizer que fosse ver-te porque depois poderia já não ser possível. Lembro-me da transferência para uma enfermaria no edifício nas traseiras do IPO, da revolta pelas poucas condições, da tua tosse.

Lembro-me de estar a trabalhar, no dia a seguir, e de a mãe me telefonar. Tinham-te colocado em coma, estavas nos Lusíadas com uma pneumonia. Lembro-me de que foi lá que descobri que faço alergia a luvas das que têm pó dentro. Vi máquinas a fazerem todo o trabalho por ti. E depois acabou. Foste-te embora.


O cancro que te apanhou é um clássico em alcoólicos e fumadores. Para o boletim dos Alcóolicos Anónimos escrevi, em nome de toda a família, algo como “obrigada por nos terem dado o Zé nestes dois anos como nunca antes”. 


Foi um processo tão rápido - uma semana desde o cinema? - mas que nos deixou em paz.

Lembro-me, sei, que te agarraste à vida e a mudaste. 

Passaste por nós. É o que sinto. Passaste por nós. Passaste por nós para nos mostrares que é possível dar-se a volta à vida. E deixaste-nos em paz.

domingo, 2 de outubro de 2022

2 de outubro de 2022

Há dias em que não me orgulho da mãe que sou. Este poderia ser o título deste texto - ou o resumo do fim de semana.

Há dias, vários, em que não me orgulho da mãe que sou. Dias, vários, em que sinto que não sirvo para esta função, para este papel. Há dias, ainda que poucos, ainda que não vários, em que me questiono silenciosamente se não terei ido contra o que me estava destinado, se não terei sido mais obstinada, se não terei querido em demasia algo para o qual não fui feita. 

E se "dias não são dias", dias há em que me dói. Dói-me o cansaço acumulado, o tom de voz que não me sai como eu desejaria que me saísse. Dói-me que não me oiça. Dói-me a pressa constante em que andamos, em que o faço andar. Dói-me que passe a vida a dizer-lhe "não gosto de esperar" mas seja a primeira a deixá-lo à espera.

Há dias, muitos, em que sinto que não lhe chego. Não chego para lhe amparar as quedas e para o preparar o suficiente. 
Há dias em que não as antevejo, em que não preparo o terreno porque vou, eu própria, às cegas. E nesses dias dói-me muito. Dói-me vê-lo a sentir-se incapaz, a sentir-se frustrado.
Como ontem, quando fomos a uma festa de uma amiga da escola em que os pais não iriam entrar - e eu não percebi. Ele ficou ali, colado a mim, muitas vezes a chorar de frustração por não conseguir entrar, por não conseguir dar o passo que todos os outros deram. E eu fiquei ali, sem dar o passo para tentar um "jeitinho" que me permitisse ajudá-lo a ambientar-se, sem dar o passo de pegar nele e nos virmos embora sem que se sentisse cada vez mais incapaz.
Como ontem, quando a minha frustração também foi crescendo e a dada altura já devia soar a zanga. Como ontem, quando o levei a comer um gelado para que sentisse que eu não estava zangada.

Há dias, muitos, em que me sinto tão cansada que só queria desligá-lo da ficha por mais uma hora ou ligá-lo numa tomada um bocadinho mais distante. 
Como hoje, em que acordou às 6h05 para choramingar ou miar, sem dizer o porquê, e o meu cansaço, a minha frustração, a minha impaciência me crescem na voz. Dias em que ele chora sem que eu perceba o porquê e eu só não choro por vergonha ou por uma necessidade - incoerente - de me mostrar forte. Dias em que a minha voz se eleva e o levanto do chão com algo mais (com algo menos) do que carinho.

Há dias, muitos, em que me recrimino por não ser sempre a mãe que quero ser. Dias, muitos, em que transporto nos ombros o peso dos dias.

Todos os dias o deito e todos os dias lhe digo "És o amor da minha vida. Para sempre". 
Que todos os dias em que consigo ser a mãe que quero ser, que todos os dias em que não lhe falho, o possam ajudar a sentir.


domingo, 4 de setembro de 2022

3 de setembro de 2022

Sentados no quarto do F, fazíamos uma qualquer brincadeira. Ouvimos o barulho, curto, de algo a arrastar, seguido do estrondo de algo a cair no chão. Lembro-me de pensar “a vizinha de cima deixou cair qualquer coisa” e de ter continuado a brincadeira por mais um ou dois minutos - ou terá sido menos? - até que umas batidas fortes na porta, acompanhadas de um pedido de ajuda, me fizeram levantar de um salto.
Fiz o curtíssimo caminho até à porta convencida de que tinha acontecido algo à vizinha do lado, já bem velhota, e que a filha estaria a pedir-nos ajuda. Quando abri a porta e vi a do vizinho da frente aberta, não estranhei, pensei que também fosse ajudar a socorrer a vizinha. 
O choque começou quando ouvi a voz que nos pedira ajuda a dizer, desse mesmo apartamento em frente ao nosso
- É o C., o C. caiu no chão. 
Entrámos pelo apartamento adentro e ele ali estava, caído no chão da cozinha, inconsciente e a sangrar.
O Luís ficou, eu voltei a sair. Voltei a casa, peguei no telemóvel e liguei para o 112. Enquanto falava com a senhora do CODU sentava o F. na cama do Alf, que fica mesmo perto da porta, e punha-lhe o iPad nas mãos para ver a Patrulha Pata.
- Não saias daqui, estou na casa do Sr. C. Se precisares de alguma coisa chama a mãe.
Certificámo-nos de que não saía da posição lateral de segurança enquanto chamávamos por ele.
- Sr. C, está a ouvir-nos? Sr. C respire. Estamos aqui consigo. Sr. C, está a ouvir-nos? Vá lá, Sr. C., fique connosco.
Enquanto repetíamos isto uma e outra vez, voltava a casa para ver do F., íamos à janela para ver da ambulância, abraçávamos a amiga que por sorte estava de visita ao Sr. C. e assim o pôde socorrer.
- Ele é o meu único amigo, ajudem-me pf. 
Não podíamos quebrar. Continuámos a falar com ele, para ele. Continuámos a falar com ela. Demos nome a uma cara e presença que fomos vendo uma e outra vez.
Nos vinte minutos que a ambulância demorou a chegar, o Sr. C. foi passando por diferentes níveis de consciência. Lembro-me de olhar para a sua mão, fechada com força, e de pensar que não o traríamos de volta. Depois começou a mexer-se, desconfortável. Pedimos-lhe para se deixar estar, pedimos que não se virasse. Conseguiu erguer-se nos cotovelos para se virar para o lado oposto. Mexeu na cabeça e soltou um ou outro queixume - não palavras, sons apenas.
- Sr. C., está a ouvir-nos?
- Hum.
- A ajuda já deve estar a chegar.
- Hum.
A ambulância chegou. Três bombeiros, um deles estagiário. Não percebi muito da avaliação que fizeram, só achei tudo extremamente lento e descontraído. Colocaram-lhe uma máscara ainda antes de o imobilizarem.
- É mesmo preciso isso?
- Depois já não conseguimos.
“E isso seria um problema para quem?” - pensámos todos.
Precisavam do cartão do cidadão do senhor. Olhámos em volta, percorremos todas as superfícies sem sinal da carteira. Avançámos para as gavetas - um exemplo de organização - e da carteira nem sinal. A dada altura olhei para ele e pensei que a teria no bolso. Era afinal um osso, dos muitos que tem salientes pelos tantos quilómetros de corrida semanais. Os meus olhos encontraram por fim a mochila preta com que já o vira antes, poisada na cama do quarto desocupado.
Lembrei-me de que devíamos contactar o filho mas nem o seu nome sabia. A amiga, felizmente, soube logo dizê-lo. Peguei no telemóvel dele a medo, pensando como conseguiria desbloqueá-lo. Não tinha código. Procurei nas últimas chamadas e liguei. Expliquei tudo com uma calma que não sentia.
Colocaram-no na ambulância trinta ou quarenta minutos depois de chegarem. Só queríamos empurrá-los até lá para que tudo fosse mais rápido. Demoraram mais dez minutos, aqui parados, até que soubessem para que o hospital o deveriam levar - o GO está a 10 minutos de nossa casa.
Quando a ambulância chegou, o filho já lá estava. Nunca houve informações médicas para além de “já fez uma TAC, aguarda consulta em neurocirurgia” ou, no dia seguinte “vai ter de repetir a TAC”. 
Foi preciso pedir ajuda a contactos de contactos no GO para se conseguir saber o seu estado clínico. Foi preciso fazê-lo até para se saber que teria tido alta - mesmo sem o filho saber. Depois de horas a tentar ligar para o GO, foi buscá-lo. Veio para casa. No dia seguinte seguiu para um hospital privado em que repetiu todos os exames. Espera-se recuperação total em 3 semanas.
Fomos visitá-lo há uns dois dias. O atleta que todos os dias corria vários quilómetros, apesar dos 65 anos de idade, estava muito parado no sofá. Do sucedido, nada recorda mas mandou um beijinho para o F. Sentado quase no escuro, vi-lhe o rosto negro. O Alf também foi cumprimentá-lo e deixou-se ficar sentado aos seus pés.
Esta noite, a primeira que passou sozinho após o acidente, ficámos com as chaves de casa como SOS. Por volta das 3h, 4h da manhã acordei com o estrondo de algo a cair. Disse “caiu” e saí da cama que nem uma flecha. No hall, enquanto decidíamos o que fazer, o Luís disse 
- Vai lá à varanda e vê se não foram as cadeiras.
Tinham sido. O Sr. C. estava em segurança.
Há perguntas que não deixam de ecoar cá dentro. E se estivesse sozinho? Se a amiga não estivesse com ele, teríamos ouvido a queda sem saber e continuado o nosso dia com toda a normalidade? Ficava ali a morrer no chão da cozinha? E se ele voltar a cair e nós não ouvirmos?

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

18 de outubro de 2018

Eu podia dizer
Estava no trânsito quando soube.
Podia dizer
estava parada no trânsito, sentada ao lado do meu filho, já depois de ter saltado do banco da frente.
Podia dizer
foi aí que soube 
mas seria mentira. Eu soube antes, soube uma ou duas semanas antes, quando depois da primeira ecografia me disseram que teria de fazer uma punção. Soube quando no final da punção olhei a médica nos olhos e lhe perguntei
- Não me quer dizer nada?
E ela me fugiu com os olhos, dizendo
- Eu não posso dizer nada, foi por isso que veio fazer a punção.
Foi aí que eu soube, cá dentro. Nesse dia eu soube que o trazia comigo.
Eu podia dizer
foi quando me ligaram para antecipar a consulta e eu disse que não podia ser, que ainda aguardava o resultado, foi nesse momento que eu percebi que algo estava errado
Eu podia dizer isso mas seria mentira. Nesse momento eu tive apenas a confirmação. 
Podia dizer que 
foi ao telefone com o médico de voz calma, foi quando o obriguei a explicar-me porque motivo me ligavam a uma sexta-feira à tarde para antecipar uma consulta que só deveria acontecer em duas semanas. 
Podia dizer que
foi nesse momento que me deram a notícia
mas não foi. Nesse dia confirmaram-me que o tinha. 
Eu podia dizer
foi ali, parada no trânsito no meio da Avenida de Ceuta, sentada ao lado do meu filho com dois meses. Ele estava a preparar-se para acordar, esfomeado, e minutos mais tarde, depois de receber o telefonema com a confirmação de que o trazia em mim, amamentei-o numa rua estreita e de mau aspeto do Alvito, dentro do carro, com as lágrimas a caírem-me pela cara e os soluços a crescerem-me no peito. 
Eu podia dizer que 
o facto de ter sabido antes me trouxe algum conforto 
mas estaria a mentir. Eu ouvi as palavras da boca do médico e quis encolher-me sobre mim mesma. Eu tive medo. Durante vários dias eu tive medo. 
Sentada no consultório todas as minhas perguntas não foram enquanto doente mas enquanto mãe, uma mãe com muito medo. 
Eu podia dizer
Não derramei uma lágrima 
mas estaria a mentir. Eu derramei muitas lágrimas. Sozinha, enquanto o observava a começar a interagir, enquanto o segurava, enquanto o amamentava.
Podia dizer
Não tive medo nenhum
mas temi que os meus dias não chegassem para o ver crescer.
Podia também dizer que
a dada altura o congelei na minha mente e assim o conservei - frio, distante, isolado - até ao dia em que o removi.
Podia dizer que 
consegui que não se tornasse o centro dos meus dias e só nos dias antes de o remover, pela noitinha, deixei que o medo tomasse conta de mim e que as lágrimas me caíssem novamente pelo rosto.
Podia dizer que 
não custou nada
e isso seria uma quase verdade.
Posso dizer que
sei, com tanta certeza como soube que o tinha, que não o tenho mais.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

14 de fevereiro de 2018

Tenho sorte. Tenho muita sorte.
Leste-me com olhos de quem quer ver e fizeste com que me soubesse querida. Avançaste comigo a cada passo, planeando e executando, de pés bem assentes na terra. O casamento, a lua de mel, as obras. Todos os projetos partilhados.
Não me falhaste um único dia nos meses difíceis de espera e enquanto eu me focava no meu problema tu dizias - e sentias - que o problema não era meu mas nosso. Quando entrava na sala de espera - que é mais concorrida do que eu pensara - nunca o fazia sozinha e partilhámos os minutos, dias, semanas e meses de espera. Quando eu tinha medo que a minha antimulleriana baixa fosse baixa o suficiente para me limitar ficaste ao meu lado e acreditaste. Acreditaste por ti e, acreditaste também, por mim. 
Tirámos fotos equipados para o bloco, acreditando que aquele dia mudaria a nossa vida. Quando ouvimos
- Aqui vão os nossos heróis. Boa sorte!
(nunca hei de esquecer estas palavras)
os nossos corações bateram juntos e emocionámo-nos ambos. Não os víamos mas acreditávamos - ainda que em versões diferentes. Tu esperaste cheio de esperança - ou de fé - e a minha foi-se desvanecendo pelo caminho.
Quando entrámos no consultório a falar sobre a minha constipação já quase nos esqueceramos do que nos tinha levado até ali e, por isso, fomos surpreendidos com os
- Parabéns!
da médica sorridente que fará sempre parte do nosso percurso.
Não me falhaste num único dia de consulta ou ecografias.
No dia em que recebi o primeiro presente com o nome dele apanhámos o susto de uma vida e eu acreditei, mesmo, que o ia perder. Tu não mantiveste a calma - ou teria pensado que não eras uma pessoa de verdade - mas acreditaste, tranquilizaste-me e acompanhaste-me. Sempre.
Foste braço direito e esquerdo em simultâneo, não poupaste esforços, foste incansável. Mas foste, acima de tudo isso, sensível. Sensível ao meu cansaço, à minha preocupação, à minha necessidade de confirmação, ao meu isolamento forçado de 8 dias. E nunca, nunca me falhaste.
Tenho sorte, muita sorte. Nunca, nem nos dias mais difíceis, me deixaste sozinha. E ter-te foi sair-me a sorte grande. Temos muito que celebrar.

sábado, 14 de outubro de 2017

14 de outubro de 2017

Quando decidi que o queria foi preciso negociar, fazer compromissos. Ouvi-a dizer
- Queres tudo ao mesmo tempo!
Mas não hesitei. E consegui convencer quem era preciso.
Era pequenino e agora é enorme. Pesava 5 Kg, agora pesa 30.
Durante o primeiro mês não pôde ir à rua e havia constantemente três resguardos em casa que era preciso trocar - com sorte. Aprendeu depressa. Hoje rimo-nos quando pensamos nas noites em que acordávamos e sabíamos que havia um presente algures. Perdemos a conta ao número de vezes em que trocámos de esfregona.
Quando veio cá para casa, as obras tinham terminado há pouco mais de um mês. Passados dois meses, percebemos que já conseguia abrir todas as portas. Desde aí, são fechadas à chave. O caixote do lixo também.
Treinámos durante dois meses numa escola, esteve na boca de um bull terrier pelo menos uns cinco minutos e escapou quase ileso, embora por pouco não me matasse do coração.
Os meus braços e pernas andaram negros durante alguns meses, com dentadas que não paravam. E era só comigo que fazia isso, uma e outra vez, repetidamente, sem pré aviso.
Foi a uma consulta de comportamento - uma espécie de psicoterapeuta para cães - e teve uma PT. Sim, ele teve uma PT e isso mudou a nossa vida - desde a primeira semana. Mas quando os meus braços e pernas deixaram de ser mordidos destruiu o sofá, roeu uma ficha elétrica, destruiu uns carrera novos em folha e a nossa casa encheu-se de pimenta por todos os cantos suscetíveis de serem destruídos.
Na rua fazia birras no chão sempre que o contrariávamos. Não era grave com 10 Kg, com 30 já era um pesadelo.
Enchi-o de brinquedos que o mantivessem ocupado, que o estimulassem. Alimentei-o com a melhor ração e reduzi a dose quando ficou gordo. Corri para o veterinário e fui das primeiras utilizadoras da Saúde Animal.
Descobriu o amor muito cedo e apaixonou-se tantas vezes e com tanta intensidade que foi preciso cortar a questão pela raiz.
Em treze meses só dormiu fora duas noites.
Acorda às 6h10 todos os dias - ou antes - não importa se é dia útil ou não. E mia, todas as manhãs.
Enquanto crescia, nestes treze meses que já passaram, ocupou-me os dias. Encheu-me de preocupações. Enchi-o de mimos. Crescemos juntos.
Somos uma família. 

sábado, 30 de setembro de 2017

30 de setembro de 2017

Porque há, inevitavelmente, um antes e um depois de algumas conversas. Algumas conversas, mesmo que curtas, podem mudar o rumo de uma vida. Como se se abrissem muitas gavetas de uma vez só e tudo começasse a voar em meu redor. Um turbilhão de coisas a voar em meu redor. E à medida que vão descendo no ar, pousando devagarinho no chão, os meus olhos pousassem numa nova realidade. Algumas conversas, têm esse poder.
Passamos a olhar com outros olhos, a ouvir com outros ouvidos. A sentir com outro coração - ou o mesmo coração, a sentir de uma outra forma.
Há um antes e um depois de algumas conversas. Quando nos olhamos e nos ouvimos e não nos reconhecemos mais. Quando olhamos à nossa volta e nos sentimos perdidos - quando, antes dessa conversa, nesse mesmo sítio, nos sentíamos em casa.
Conversa puxa conversa - como as cerejas, numa versão amarga. Conversa puxa conversa, conceção puxa conceção, ponto de vista puxa ponto de vista e, num instante, não nos reconhecemos mais. Onde  é que se pára? Quando é que se pára? Quando se pede silêncio?
E não há mais silêncio, mesmo quando nos calamos. Aqui dentro não há silêncio. Há gritos de diferentes vozes, há diferentes tons. E há lágrimas. E dor. E tristeza.
Algumas conversas podem mudar o rumo de uma vida. É preciso descobrir de que forma.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

28 de junho de 2017

Refugio-me aqui em dias como este. Arrumo-me aqui num cantinho que conheço, que me conhece já, enquanto as pessoas vão passando, falando, ficando.
Refugio-me aqui quando a ansiedade me apanha, quando me sei já a contar dias no calendário. Refugio-me aqui e observo as pessoas que já me conhecem pelo nome e pela bebida de sempre. E recordo as outras que comigo se sentaram aqui antes. Recordo-as e sei-me sensível, sei-me frágil.
Fujo dela todo o mês. Mas em dias como este, em que a ansiedade me apanha, refugio-me aqui e tento deixá-la. Em dias como este, em que me sei atenta. Em que me observo com mais atenção no espelho de todas as perspectivas. Em que procuro perceber se o meu olfato está mais apurado, mais sensível; se me dói ou não a cabeça; se quando cruzo os braços ainda me dói ou não o peito. Estou atenta. Estou atenta e ansiosa. 
E em dias como este refugio-me aqui e tento que ela passe por mim sem ficar.
Porque estes são os dias que me custam, os dias da contagem, os dias de sentidos alerta e nervos à flor da pele. Os dias em que ela me apanha.

domingo, 23 de abril de 2017

23 de abril de 2017

Como se fosse assim tão fácil. E não é. Ou não o é para todas.
Nem sempre se escolhe. Nem sempre se escolhe e às vezes acontece, outras não. E às vezes escolhe-se e nada. Nada. Mês após mês, nada. E como ninguém fala sobre o nada, como ninguém fala sobre quando nada acontece, julgamo-nos sozinhas nisto. Julgamos ser as únicas ansiosas naquela altura do mês, julgamos ser as únicas a conter o entusiasmo perante um dia de atraso e, depois, quando afinal nada, julgamos ser as únicas dececionadas, angustiadas, ansiosas. E não somos.
Não somos e importa falar sobre isto. Importa falar sobre isto para que mais ninguém se sinta uma ilha, para que mais ninguém se sinta um fracasso isolado. Sim, é isso que se sente. Sentimos que o nosso corpo - o nosso, não o de outra pessoa - falhou, não responde e questionamo-nos onde, em que momento, teremos cometido um erro. Sentimo-nos contranatura. O nosso corpo devia responder, não devia falhar. Sentimo-nos contranatura porque, às vezes ainda nem nos 30, o nosso corpo não responde. E mês após mês NADA. E ficamos ansiosas, cada vez mais ansiosas. E ouvimos, uma e outra vez
- Tens de ter calma
- A ansiedade não ajuda nada
E queremos gritar que se coloquem no nosso lugar e que vejam depois se é possível ter calma perante a falha constante, perante mês após mês de nada. E não, não é possível.
Mas algures no tempo disto se fez tabu e ninguém fala, ninguém diz, ninguém conta, ninguém partilha. Ninguém partilha que às vezes, mesmo sendo contranatura, se chega aos 30 como se se chegasse aos 50. E sim, lamentavelmente isso acontece. Às vezes, ainda que poucas, ainda que espero que sejam poucas, há quem chegue aos 30 já como se fosse aos 50. E a culpa não é de ninguém. Não é preciso ter vergonha, não é preciso esconder. Não devia ser preciso porque nessa altura o nada ocupa já tanto espaço que não devia ser preciso escondê-lo.
E quando se chega aos 30, não chegando já o que se sente, não chegando já sentirmo-nos ilhas isoladas e sentirmo-nos culpadas, não chegando já a vergonha, temos ainda de responder à pergunta dos que aguardam por notícias e dizer, como quem não quer a coisa
- Ainda nada
ou então, quando não queremos que a repitam no mês seguinte podemos sempre dizer
- Decidimos adiar
como se falássemos de uma viagem ou de algo com pouco importância. 
Não podemos dizer que estamos mal dispostas porque vamos de certeza ouvir uma piada, não podemos dizer que temos sono porque a piada será igual, mais ainda se nos apetecer comer algo doce ou salgado. E nada disso tem piada.
Não queremos falar sobre isto com qualquer pessoa porque somos nós, é o nosso corpo, que não está a responder. Por isso o melhor é, já que disto se fez tabu, que também da pergunta se faça, e a menos que vejam barrigas a crescer, guardem a pergunta - e as piadas - para vocês. Porque isto dói, e dói muito e, como nos sentimos isoladas, como nos sentimos sozinhas, temos vergonha da resposta. Respeitem isso.
E saibam que não somos ilhas. Antes fôssemos.

(e partilhem, se acharem que há tabu a mais - ou a menos)

terça-feira, 21 de junho de 2016

19 de maio de 2016

Quero fotografá-los várias vezes ao dia. Enquanto os observo, de olhos bem abertos, atenta às suas reações, à forma como interagem, quero fotografá-los, guardar para sempre alguns dos momentos que partilhamos.
Como esta semana, quando os vi abraçarem-se os dois mesmo à minha frente, um feliz por ter recebido o desenho de parabéns, o outro feliz por ter surpreendido o amigo. Um abraço tão carinhoso, tão sincero. E eu tão feliz a observá-los, a querer guardar aquela imagem em mim.
Como hoje quando atrás do palco, já prontos para entrar em cena, lhes perguntei se a minha franja estava bem e os ouvi a dizer que estava, "Como sempre", mas que a gola da camisa estava torta. E então dei por mim a ser arranjada por um deles, com aquelas mãozinhas ainda um pouco gorduchas a colocarem-me a gola da camisa para dentro da camisola. Entrei em palco sem saber bem o que dizer e quando voltei aos bastidores eram eles quem me aplaudia, uns erguendo os polegares, outros sorrindo.
Como no fim, enquanto cantavam em semicírculo a música de encerramento e eu me agachava atrás da cortina e os observava daquele meu cantinho - com as lágrimas a caírem umas atrás das outras. 
Quero fotografá-los com medo que a minha memória não seja suficiente para segurar em mim todos os momentos que passámos juntos.

terça-feira, 19 de abril de 2016

19 de abril de 2016

Houve dias difíceis. Dias em que me agachei nos corredores, quase a tocar o chão. Dias em que as páginas se sucediam umas às outras, me passavam pela ponta dos dedos, prendendo-me a atenção, deixando que me escondesse do que se passava em redor. Porque houve dias, vários, em que me quis esconder.  Dias em que as máquinas apitavam, em que nos entreolhávamos em silêncio. Dias em que esperávamos pelo melhor, ainda que sem saber bem o que esperar. Dias, vários. 
Houve histórias que fomos ouvindo naqueles mesmos corredores, histórias da vida que se ia indo, histórias de quem já se ia, de quem ficava. Histórias que traremos sempre connosco, que fazem parte da nossa. Histórias como a nossa.
Houve dias mais difíceis, horas várias agachada. Horas, umas após as outras, quase sem sair do mesmo lugar. Foram dias, ainda que nem muitos, ainda que poucos. São dias ainda, às vezes.
Houve dias que chegaram a ser noites, quase sempre chuvosas. 
Houve um dia, já noite, em que cobri as mãos com as luvas, vesti a bata e coloquei a máscara e fiquei só ali, a ver o teu peito que se insuflava com a força da máquina, com um barulho que não era o teu, com um silêncio quase ensurdecedor em ti. A janela, mais atrás, quase escondida por detrás de todos os monitores. E o ventilador que subia e descia. Nesse dia, em que me despedi de ti ali, enquanto te via, enquanto te olhava e via aquilo que somos - que é afinal tão pouco - gritei. Gritei a plenos pulmões, com a chuva a cair com força no limpa párabrisas e isto a tocar bem alto em meu redor.
Hoje os dias são outros. 
Ontem, enquanto ouvia isto, enquanto ouvia todas as vozes entoando isto em coro, tentei acreditar.
dog days are over.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

25 de janeiro de 2016

No outro dia vi alguns dos seus trabalhos mais recentes, vi como o seu trabalho está a crescer, a ganhar outra dimensão, e tive saudades. Tive saudades do nervoso miudinho antes de cada prova, das nossas vozes no elevador apertado. Tive saudades de entrar dentro do vestido, de as ver a ajustarem-no a mim, num puxa daqui e puxa dali. Tive saudades de me olhar ao espelho, prova após prova, e de o ver, de nos ver, ganhar forma. Tive saudades até das nossas vozes em sussurro elevador abaixo, procurando não ser ouvidas até ouvirmos a porta que sempre estourava à nossa saída. Tive saudades daquele momento em que o vi olhar para mim dentro daquele vestido como quem vê, de repente, que eu cresci.
No natal enviámos um email ao senhor do catering. Queríamos ter enviado também um email ao padre mas acabou por nos faltar o tempo (e também a lembrança). Sinto, sentimos, que todas as pessoas que fizeram parte daquele dia farão para sempre parte das nossas vidas: a Pureza do vestido, o meu Gabriel do cabelo, o Tadeia do catering, o padre Abraão da melhor cerimónia de sempre, o Bruno e o Tiago das fotografias - os nossos amigos, a nossa família.
Tivemos a sorte de nos rodearmos de pessoas sempre disponíveis a ajudar, mesmo com o mau feitio que a ansiedade por vezes provocou. O padre Abraão não foi exceção. Ele foi reuniões à noite à porta da igreja em que discutimos os perigos de andar de mota, missal revisto online, telefonema no dia do casamento para o avisar de que estava atrasado. E agora sorrio quando penso nisso. Eu fui a noiva que fez questão de escrever no croqui "A noiva será pontual". E teria sido, não fosse saber que o padre estava atrasado.
Digo, com alguma frequência, que não me lembro de ouvir a música. Tenho a sensação de ter percorrido o corredor demasiado depressa. Sei que assim que passei a porta o meu queixo começou a tremer e os meus olhos se encheram de lágrimas que não chegaram a cair. Vi-a lá à frente, de queixo também a tremer e de lágrimas nos olhos a dizer-me com os lábios
- Não chores.
Sorrio quando penso na cerimónia, na forma como o padre integrou os meus alunos, como brincou e nos acarinhou a todos com as suas palavras, como - quando todos se questionavam se podiam aplaudir - ele pediu que nos cantassem os parabéns e nos deu para apagar as velas do altar. Pressiono ligeiramente um lábio contra o outro quando me lembro da forma como ela fez a sua leitura, revendo-me a mim própria anos antes. Rio-me quando me lembro de colocar o meu lenço molhado no bolso do noivo.
Eu nunca quis casar. Até chegar a altura em que quis. Eu dizia que ia odiar o dia do casamento, que "não sou uma pessoa de pessoas", que não ia ter paciência para estar rodeada de gente todo o dia. Mas o dia voou. Não era gente, era a minha gente - e isso fez toda a diferença. Não houve uma só pessoa que eu não fizesse questão de ter presente - naquele dia e em todos os outros.
E o dia voou, entre fotografias que eternizaram aqueles momentos, entre sorrisos partilhados, entre passos de dança dentro do vestido já castanho de arrastar no chão. 
6 meses depois, continuo com saudades deste dia. Obrigada. Foi o dia mais feliz da minha vida. E tenho as melhores pessoas.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

15 de dezembro de 2015

Eu.
Eu não lido bem com instabilidade. Preciso de tudo arrumado, as pessoas todas no seu lugar, no meu lugar. 
Eu não lido bem contigo. Não lido bem com a tua instabilidade, com o nunca saber se vais (querer) estar ou não. Não lido bem com os teus silêncios, com os teus olhos silenciosamente pousados em mim, com os teus dedos que não se mexem, que não (me) escrevem. 
Eu não lido bem com perdas - não com A perda, com perdas constantes, com este não saber se estás ou não, se amanhã também estarás aqui.
Eu não lido bem com a tua ausência, com o espaço em branco que deixas. Eu não lido bem com espaços em branco antes ocupados, eu gosto das pessoas todas no seu lugar, arrumadas, quietas - perto de mim.
Eu.
Eu não gosto quando te colocas à parte (porqu)e nunca sei se TE colocas a ti, se ME colocas a mim. Eu não lido bem com a corda bamba em que me fazes caminhar, com estes constantes mini-ataques cardíacos que nunca o chegam a ser.
Eu não lido bem com a tua tristeza, nem com a tua fraqueza. Não lido bem com os olhos tristes. Não lido bem com a minha incapacidade de lidar com eles, nem com a vontade de te passar as mãos pelo cabelo e te dar colo.
Eu.
Eu não lido bem com as dúvidas, com o talvez. Eu preciso do sim ou sopas, do é ou não é, do estás ou não estás - mesmo que não estejas. Eu não lido bem com o não saber se vais estar do outro lado quando o telefone tocar, com o não saber com o que posso contar.
Eu não lido bem com as palavras que me querem sair pela boca, pelos dedos. Eu não lido bem com as piadas tontas que faço enquanto tento calar as verdades que tenho para te dizer nem com respostas tortas que dou e que tanto dizem.
E mesmo quando caminhamos lado a lado pela rua escura, quando somos só nós, eu não lido bem com todas estas questões. 
Eu.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

10 de dezembro de 2015

Lia-lhes o livro em voz alta, sentada na mesa de apoio que mantenho junto à minha secretária, com os pés em cima da cadeira. Temos vindo a lê-los ao longo deste primeiro período. Tenho pedido - muitas vezes, como hoje uma aluna me apontou - que me digam o que o livro, o que os parágrafos e as passagens os fazem sentir, o que ou de quem os lembra. Explico que se formos capazes de identificar as nossas emoções mais facilmente conseguiremos lidar com elas, domá-las quando necessário. 
Eles não sabem, não precisam de saber, que o temos descoberto juntos, que o leio agora pela primeira vez, surpreendendo-me como eles se surpreendem, analisando como lhes peço que façam, que o fazemos muitas vezes em conjunto. Eles não sabem que escolhi fazer assim, que quis que esta história fosse nossa antes de ser minha.
Hoje lia-lhes o penúltimo parágrafo. Lia-lhes as páginas em que a personagem principal se prepara para partir, para regressar ao sítio de onde veio.
Quando nos deixamos prender a alguém, arriscamo-nos a chorar de vez em quando…
E assim, enquanto leio em voz alta, a minha voz treme ligeiramente, enquanto os meus olhos ficam enublados e as lentes dançam um pouco. Faço pausas mais demoradas nas vírgulas, nos pontos finais - preciso de respirar, de ganhar fôlego, de me encher de ar para conseguir ler sem demoras, para que as palavras me saiam seguras uma depois da outra. Não quero que percebam que me emociono assim.
Debato-me sempre, indecisa. Não sei se hei de ser pessoa, se super mulher. Não sei se quero que saibam de que fibra sou feita, se é melhor conservarem esta imagem de professora durona.
Emocionei-me hoje com estas palavras. Emocionei-me também ao ouvi-los, quando lhes pedi exemplos práticos desta situação - por serem duros, por muitos já terem ocorrido desde que existimos. Emocionei-me ao identificar-me com os exemplos deles.
Quando nos deixamos prender a alguém, arriscamo-nos a chorar de vez em quando…
Eles não sabem, poucos o sabem, mas faço-o com frequência.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

2 de dezembro de 2015

Preciso disto. Preciso destas pausas só para mim. De me sentar a esta mesa e de me deixar ficar aqui, de mocca branco na mão, com extra dose de chocolate branco.
Sorrio quando os funcionários me cumprimentam usando o meu nome próprio e completam o meu pedido quando este ainda vai a meio. Sou uma pessoa de hábitos, de rotinas. Gosto das que são só minhas.
Gosto dos meus momentos, de quando eu sou apenas eu e não o eu professora, o eu mulher, o eu amiga, o eu das outras pessoas. Ser apenas eu sabe-me bem e preciso tanto disto. Sou melhor eu quando consigo sê-lo em silêncio, em sossego.
Sento-me aqui e os dedos começam de imediato a percorrer o teclado, como se precisassem deste momento. E precisam. Precisam tanto disto quanto eu. Mastigo ideias dias a fio à espera do tempo para me sentar aqui e as deixar sair. Preciso disto.
Nesta(s) mesa(s) escrevi os textos de que mais gosto. Escrevi sobre amores, sobre dores. Escrevi sobre perdas. Escrevi sobre alegrias e fiz balanços de uma vida. Hoje podia escrever sobre o medo dos dias em que estas pausas me fujam.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

24 de novembro de 2015

Eu não me vou encaixar. Eu nunca me encaixo. Sou sempre o bichinho - não o social, o do mato. Costumo dizer que tenho poucos amigos, que tenho poucos mas (muito) bons. E é verdade.
Sempre lidei bem com isso. Sempre ouvi afirmações sobre o meu feitio, caracterizado sempre como sendo mau. Sempre ouvi queixas sobre a forma um pouco impulsiva como reajo a imprevistos e a situações que fogem ao meu controlo. E é verdade. Gosto de saber com o que conto, quando, onde, com quem. Não gosto que me troquem as voltas, que me mudem os planos, que me deixem sem resposta. Penso muito sobre tudo. Sobre as minhas reações, sobre as dos outros, sobre o que disseram ou deixaram por dizer e o que quiseram dizer com algo que efetivamente disseram. Não sou calculista - de todo. Gosto apenas de planear, de me organizar. Talvez precise disso para me sentir mais segura: saber o que vai acontecer agora, o que vai acontecer depois.
Confirmo o meu feitio delicado. Costumo chamar a atenção para ele logo de início quando conheço alguém.
- tenho um feitio terrível
ou
- não sou uma pessoa fácil
ou
- ainda não viste o meu lado mauzinho
Não quero surpreender ninguém, desapontar. Prefiro que saibam desde o início com o que poderão contar.
Sempre lidei bem com o facto de me rodear por poucas pessoas. Aliás, sempre estive habituada a isso. Gostava de brincar sozinha com as minhas barbies, de ler nos recreios, de passear sozinha pela baixa, acabar a tarde junto ao rio com um copo do Starbucks numa mão e um livro na outra. Gosto do silêncio, da calma, da bolha em que me escondo às vezes - quando isso é uma escolha minha.
Mas, às vezes, apercebo-me de que sobro. Sobro muitas vezes. Eu não me encaixo nos grupos. Faltam-me os temas em comum, os interesses coincidentes. Não tenho nada a acrescentar e, frequentemente, não encontro interesse no que poderia dizer e, por isso, não digo. Outras vezes abro a boca, falo, mas os olhares dos outros nem pousam em mim, como se simplesmente não me ouvissem, como se eu tivesse falado apenas para dentro - e não falei.
Às vezes sinto que não pertenço, que estou a mais. Tremo por dentro, fecho-me por fora. Até que me sinto protegida e deixo que as lágrimas me escorreguem pelo rosto enquanto, por entre soluços, tento explicar o que talvez não tenha explicação.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

3 de novembro de 2015

Às vezes fico só ali a observá-los. Apoio-me no parapeito da janela (sobre o qual, no outro dia, um deles dizia que se devia chamar parapernas, de tão baixo que é) ou sento-me numa cadeira das pequenas, camuflando-me no meio deles. Gosto que se esqueçam de mim por alguns minutos, de os ver trabalhar como se eu não estivesse na sala, de ver como se organizam e se relacionam.
Fico a observá-los. Faço-o já há mais de três anos e faço-o talvez agora com maior frequência, sendo este o último ano juntos dentro destas quatro paredes. Observo-os com admiração - com sentido duplo, que se por um lado me deixam admirada, surpreendida, por outro o faço com todo o respeito, com reverência até.
Vi-os aprender a ler e já nem sei bem como o fizemos mas fizemo-lo - e depressa. Leio os seus textos e rio-me, emociono-me, zango-me às vezes - e fico, quase sempre, impressionada. 
Às vezes, quando planifico o nosso trabalho semanal, dou por mim indecisa, à procura do melhor caminho a seguir. Hoje, por exemplo, fizemos uma das nossas rotinas de trabalho de forma diferente da habitual. No final, quando me preparava para lhes perguntar que tal lhes tinha parecido, houve braços no ar que se anteciparam, houve opiniões bastante favoráveis e houve, acima de tudo, a capacidade de reflexão a que me têm habituado. Em momentos como este, em que expõe as suas ideias e fundamentam a sua opinião indo ao encontro de toda as teorias que desconhecem, tenho vontade de os gravar, de gravar para sempre aquilo de que são capazes. Nestas alturas percebo que alguma coisa tenho feito bem.
Vejo-os a mexerem com números cada vez maiores, com unidades de medida, com contas complexas e estratégias que não raras vezes exigem um segundo olhar. Vejo-os a batalharem, a trabalharem autonomamente os conteúdos em que se sentem mais inseguros até que estejam fortes o suficiente. Vejo-os a ajudarem-se uns aos outros. E orgulho-me.
Gosto que saibam que estou disponível para aprender com eles. Realmente. Gosto de os ouvir quando a minha opinião ainda não está bem formada, de ouvir as suas propostas de solução, de organização. Gosto que em pouco mais de um minuto consigam organizar pares de trabalho, escolher a proposta em que querem trabalhar e com que aplicação. Gosto que sejam elogiados por terceiros pela forma como trabalham - porque às vezes o meu olhar pode estar já viciado, tornando-se demasiado tolerante.
Mas sou exigente. Sou exigente com a atitude perante os outros, com a atitude face ao trabalho. Gosto que se empenhem, que se esforcem, que procurem superar-se diariamente. Sou muito exigente comigo própria neste papel. Os sucessos são deles, as derrotas são minhas. Sempre. Tenho imenso orgulho em tudo o que já conquistaram mas não esqueço que nem todos chegámos até aqui.
Às vezes, não raras vezes, fico só ali a observá-los. Quando descrevo o que se vive ali a quem está de fora sei que não transmito nem metade. É preciso viver isto.

sábado, 10 de outubro de 2015

10 de outubro de 2015

Lembro-me de ti com frequência. A semana passada abri o frigorífico para tirar alface e lembrei-me de ti. Sorri, como faço quase sempre nas vezes em que te recordo. Lembro-me de ti em situações como esta. E não sei porquê. Nunca comemos alface juntos. Cozemos massa e fizemos um sumo.
Lembro-me de ti quando falo da Gulbenkian ou quando a visito, quando me sento na relva e recordo as muitas horas ali passadas. Lembro-me dos queques gigantes da Avenida de Berna. Lembro-me do teu jeito muito próprio de andar, do facto de (quase) nunca chegares a horas e da forma como isso não me incomodava nem um bocadinho. Lembro-me de ti quando o oiço falar com os seus
- hum 
Lembro-me do dia da minha peça de teatro, da forma como depois me arrastaste para o teu colo e me disseste que tinhas muito orgulho em mim. Lembro-me das borboletas na barriga.
Lembro-me de ti quando penso nas noites de Bairro Alto, quando nos vejo rua fora de mão dada. Lembro-me de ti e sorrio. Lembro-me de ti de roupão e de fumarmos assim à porta do prédio, de descansar umas horas e de sairmos de fininho para não acordarmos a tua irmã, apressando-me para apanhar o primeiro autocarro da manhã. Era contra as regras trazer alguém para dormir. 
Lembro-me de que me apoiaste. Muito. Lembro-me de falar contigo sobre ela e sobre todas as coisas disparatadas que fazia e de a expulsares das nossas conversas por quereres expulsá-la da minha vida. Lembro-me de que um dia, um dia já bem perto do fim, pouco antes de o perder, confessei às escuras ter muito medo. Lembro-me de tapar a cabeça com o edredão, como se assim não o ouvisses, como se assim não fosse verdade, como se assim eu não tivesse por que ter medo. Como se eu não estivesse a ser fraca. Lembro-me de ti virado para a parede, de observar as fotografias espalhadas por toda a parte e não me encontrar em nenhuma. Lembro-me - ou secalhar não me lembro, secalhar penso agora - que eu nunca estive em parte alguma.
Lembro-me de ti e sorrio. Lembro-me de que gostava muito de ti, meu amigo.
Lembro-me de que um dia entraste no hospital ao meu lado, que caminhaste comigo de mão dada pelo corredor que às vezes ainda percorro - em que me lembro dele e me lembro de ti.
E lembro-me de que no dia, naquele dia, te liguei noite dentro e o teu telemóvel estava desligado. Que o perdeste no festival. Lembro-me de que te queria dizer e não sabia como, de falar com a tua mãe ao telefone e de não lhe querer dizer. E lembro-me de que depois, quando estivemos juntos, falei de tudo menos daquilo e que foi preciso tapar-me com um casaco para conseguir falar. Nesse dia, no metro, quando eu estava quase a sair, em pé, encostados à porta, chegaste-te mais perto e disseste
- gosto muito de ti.
Lembro-me dos nossos teatros de rua. Dos textos no blog que escrevia para ti, sobre ti, a pensar em ti.
Depois eu entrei para a faculdade. Comecei a namorar com ele e praticamente deixei de te ver. E assim, sem eu perceber bem como, nem porquê, saíste da minha vida. Anualmente, no dia do teu aniversário, envio-te uma mensagem que diz "Parabéns, Manel. Beijinhos. Maria". 
Lembro-me de ti.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

5 de outubro de 2015

Durante uns dias foi tema de conversa ao almoço.
-  Vamos correr.
- Mas costumas correr?
Eu não corro. Eu não faço exercício. Eu era miúda que fingia ter deixado o equipamento em casa para não ter de fazer a aula de Educação Física - uma e outra vez. Eu tinha dores de barriga todas as semanas e não apenas uma vez por mês. Tive sempre o 3 a manchar-me a pauta. Houve momentos, raros, em que fui assídua no ginásio. Objetivo: ganhar peso, desenvolver a massa muscular. Respirar. Estar comigo. Há dois anos, ainda inscrita no ginásio, saía do trabalho e ía correr para a rua. Andar. Correr. Andar. Fui melhorando. E desisti. Há pouco mais de um mês inscrevi-me no ginásio. Consegui a proeza de ir lá apenas uma vez. 
- E quanto é que vão correr?
Houve opiniões divergentes. Eu coloquei como meta os 3 km. Nem isso achava que ia fazer. 
- Vamos até à ponte.
Eu disse-lhe que não sabia o que estava a dizer, que ainda agora tínhamos começado e que não podia ter noção da minha (in)capacidade. Eu corri até à ponte. Às vezes andei. Mas corri. Fui até lá. Fomos e voltámos. Queixei-me
- Tenho demasiado ar cá dentro
e
- Já nem estou a ver bem 
ou
- Estou a morrer de sede
e
- Tenho dor de burro nas costas 
(e tenho mesmo)
Eu fui e voltei. E não acreditava que seria capaz. Os meus pés pisaram a calçada, pisaram o alcatrão. Um pé, depois o outro, vezes e vezes sem conta, às vezes já sem quase se descolarem do chão. Mas fomos e voltámos. E voltei maior. 
Eu não corro. Mas da primeira vez fiz 5,2 km. E da segunda também, já com menos paragens na ida. Se me soube bem? Superei-me em cada passada. Se doeu? Doeu, doeu bastante até, mas soube tão bem.
Hoje voltámos a ir. O primeiro dos dois dias da semana. Mal começámos a chuva começou a cair. Primeiro de fininho. Depois pingas grossas, afiadas, batidas pelo vento. Os pés encharcados, as calças molhadas coladas ao corpo, o corta vento a deixar passar toda a água. Os olhos a lutarem contra as gotas presas nas pestanas, com as lentes a ficarem baças. Abrigámo-nos do vento de encontro a uma parede. Rendemo-nos, já com os ouvidos cheios de água. Mas ri-me, ri-me muito. Eu, Joana Loureiro, a correr debaixo de um temporal. Nós fizemos a nossa parte.
Troquei de ténis e de tshirt. Vim para casa enregelada, com as calças molhadas. Pelo caminho consultei a aplicação que nos acompanha. Hoje corri o quilómetro mais rápido de sempre. Debaixo de um dilúvio. E soube tão bem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

24 de setembro de 2015

Quero dizer-lhe que chegou a altura. Ali, sentada naquele sofá, com uma perna dobrada por baixo da outra enquanto agarro uma das almofadas. Eu digo
- então...
mas o então veio molhado, veio escorregadio. Interrompido. O então veio com lágrimas e com riso. O 
- então 
sai abafado pelas lágrimas e pelos soluços que eu não sei se são choro, se gargalhada.
Pressiono um lábio contra o outro, tento perceber o que estou a sentir. Foi isso, também, que aprendi a fazer aqui. Ela olha-me, sentada na cadeira em frente a mim e sei que sabe o que quero dizer. 
Fomos falando sobre isto desde há já algum tempo - mas este tem sido um ano cheio de emoções para gerir e eu fui adiando, insegura.
Às vezes, quando tento pensar há já quanto tempo este momento faz parte da minha vida, tenho dificuldade. Estou confortável aqui, tenho estado. Não olho para o relógio ou para o calendário. Mas sei. São já três anos. Três anos nem sempre fáceis, três anos a crescer. Houve dias em que quis vir mais vezes, outros houve em que me zanguei por vir - mas vim, sempre.
Durante estes três anos chorei lágrimas que nem sabia ter para chorar. Chorei a morte, chorei o fim, chorei começos que nem chegaram a ser. Chorei as zangas. Chorei até as alegrias. Chorei de orgulho.
Comecei sempre com um
- está tudo bem...
que já nos faz rir e fui, invariavelmente, saltando de assunto em assunto, muitas vezes tentando fugir à reflexão. Só uns ouvidos atentos como estes me conseguiriam acompanhar.
Tive trabalhos de casa. Tive de estar atenta a mim própria. Aprendi a ouvir-me, a respeitar-me mais. Aprendi que sozinha também pode ser bom - e foi, enquanto foi. Aprendi que compaixão não é pena -  e que não faz mal que a tenhamos por nós próprios. Aprendi que é saudável zangarmo-nos quando assim tem de ser, que não é preciso fugir. Aprendi a chorar de alegria.
A pouco e pouco houve mudanças. Primeiro o cinzento cedeu e houve um rosa, cada vez mais forte, a crescer em meu redor. Aprendi a ver a cores e não apenas a cinza. Depois fui desligando os alertas, as sirenes. Aprendi a respirar. E a aceitar. Aprendi a confiar, a acreditar que o que acontece é sempre pelo melhor - mesmo quando, à partida, não o conseguimos ver.
O
- então...
sai-me por entre lágrimas. Lágrimas felizes. Lágrimas de vitória, lágrimas de quem chegou até aqui - e que chegou bem melhor do que saiu.
Digo
- estou crescida
e ela sorri. Sabemos que é verdade.

domingo, 13 de setembro de 2015

13 de setembro de 2015

Ele começou o dia a responder à pirraça da avó
- estou na esplanada em frente à praia de Sesimbra - disse ela
- e eu logo à tarde vou ao cinema com a tia Joana
(toma, toma)
Fomos buscá-lo. Vinha entusiasmado, falador como só ele sabe ser. Íamos ver a Ovelha Choné, um (quase) clássico.
Não havia ninguém na bilheteira e ainda tínhamos algum tempo.
- são três bilhetes para a Ovelha Choné, umas pipocas...
- doces - disse ele
- e uma água natural.
Pouso o cartão da Zon no balcão
- tem uma identificação? - pergunta o funcionário 
e enquanto vasculho a carteira à procura do meu cartão do cidadão ouço dizer
- mas é para esta sessão?
- sim... - respondemos a medo
- está esgotada.
Engulo em seco. Olho para ele, mais abaixo, vejo-o começar a contorcer o rosto, a apertar os lábios, a fazer beicinho
- só tenho dois lugares
Olhamo-nos em silêncio e ele, impecável, diz
- vão vocês, fico por aqui a dar uma volta
uma volta de uma hora e meia, penso.
- pode ser então - digo
- mas os dois lugares são separados - acrescenta o senhor.
Olho para ele e já não lhe vejo a cara. Enrolou o casaco, tapou a cara com ele e chora desalmadamente. Ele chora. Eu quero atirar-me para o chão a fazer o mesmo.
Levamo-lo para um canto, dou-lhe colinho, limpo-lhe as lágrimas enquanto penso que devia ter antecipado isto, enquanto me culpo por cada uma das suas lágrimas. Levo-o ao colo durante um bocado, enquanto procuro acalmá-lo.
- vamos durante a semana, a seguir ao colégio - digo eu
- não. não. não.
E eu quero fazer beicinho.
A mãe envia o horário de outro cinema.
- vamos lá?
- sim - diz, ainda sem sorrir.
E fomos. Desta vez chegámos bastante cedo. Desta vez a sala tinha ainda muitos lugares. 
Ainda fomos comprar os ténis que a mãe pediu. Assisti à melhor estratégia de sempre para experimentar sapatos novos: correr com eles. Calçou um ténis, pôs-se em posição de partida e atravessou o corredor da loja a correr. No regresso levantou o polegar. Prevenida, ainda tentei o número acima, na expectativa de que durassem mais. Utilizou a mesma estratégia. Voltou de polegar para baixo.
Quando o deixámos em casa ia feliz. Depois de eu sair abriu a porta e disse
- obrigado, tia.
Obrigada eu. Sempre.